Para a história, ficou a imagem do Ulysses destemido, condutor da democracia, esfinge que não contempla as disputas de bastidores.
Entre os "autênticos" do MDB, Ulysses passava por conservador. Experiente em disputas partidárias, Tancredo ganhou a plumagem da conciliação. Teotônio temperava as trocas de pontapés.
Nas eleições indiretas de 1974, a Anticandidatura de Ulysses e Barbosa Lima Sobrinho pacificou, momentaneamente, as correntes intrapartidárias. "É o anticandidato que vai percorrer o País, denunciando as antieleições", dizia Ulysses, na sucessão de Médici.
A idéia da campanha simbólica partiu dos autênticos. Mas um acordo foi quebrado: em vez de renunciar à candidatura e denunciar o caráter antidemocrático das eleições, os dois quixotes do MDB permaneceram até o fim. Não receberam os votos dos autênticos. O general Ernesto Geisel saiu vitorioso.
"O acerto com os autênticos era renunciar na véspera e esvaziar o pleito. Mas isso não foi mesmo cumprido", lembra-se o ex-deputado e ex-ministro da Justiça Fernando Lyra. O ano de 1974 marcaria ainda a vitória legislativa do MDB, que ampliou seus quadros no Congresso.
Chico Pinto reconhece que a Anticandidatura serviu, ao menos, para Ulysses "tomar gosto" pela oposição aos militares.
Terra Magazine - Qual era a resposta dada pelos militares a suas sondagens? O senhor se lembra de alguns nomes?
Ah, tive contato com vários. Esqueço muito de nomes e, pra mim, era importante esquecer. Se você perguntar sobre aquele pessoal que eu ajudei da luta armada, é a mesma coisa. Eu tinha três revólveres 45 e dei dois, fiquei com um. Isso eu nunca disse a ninguém porque era um negócio perigoso. Ajudava como eu podia, era um apoio logístico ao movimento... Alguns dos militares tinham lido Marx. Um deles, em casa, me mostrou um livro de Marx...
Na certa, apreendido de comunistas.
(risos) Mas não era!
O senhor chegou a ter contato com Lamarca?
Pessoalmente, não. Indiretamente. Sabia onde ele estava. No princípio. Sobretudo sabia mais quando Iara (Iavelberg) estava na casa de um médico de Serrinha chamado Hamilton. Ela passou uma temporada lá.
Hamilton Saphira?
É. Era "comuna". Muito reservado, mas do Partido.
Como era a relação do grupo autêntico com Ulysses e Tancredo?
Tumultuada. No princípio, muito tumultuada porque Ulysses não era o presidente do MDB, era Oscar Passos. Ulysses era vice e queria assumir. Depois do AI-5, pra você ter uma idéia, não se fazia discurso contra o governo. Nem projeto se apresentava, a não ser um de estrada e não-sei-o-quê.
Tancredo, Ulysses, Thales Ramalho eram do grupo majoritário. E se aliavam ao grupo adesista pra impedir nosso avanço. Porque eles achavam que nós prejudicávamos a abertura democrática com radicalismos.
Começou com muito atrito. Porque eles não queriam avançar. O Tancredo, sabidamente, embora em determinado momento histórico tivesse sido de muita coragem - no caso de Getúlio Vargas, foi dos poucos que admitiram a resistência, e no próprio governo de Jango, quando ele foi líder do partido e não votou no Castello Branco -, mas o Tancredo, depois dos perigos que passou, se retraiu muito.
Ulysses era a posição de querer agradar ao pessoal adesista - e aí se chocava com a gente. A diferença entre nós era grande. Primeiro, não achavámos que dava para fazer oposição penteando macaco. Era necessário ser aguerrido. Íamos pra tribuna, pau violento. Correndo riscos, mas não tinha conversa. Mas é claro que ninguém queria perder o mandato.
Aí você pergunta: e a relação deles (moderados) com os militares? Animosidade. Ulysses não gostava de militar, não queria saber da vida militar.
Chamou a Junta militar de "Os três patetas".
Mas isso foi depois... O grupo autêntico, você sabe, a maioria tinha sido vítima, presa em 1964. Por isso, defender a tese de aliança com os militares era um negócio inusitado. Foi um trabalho convencê-los politicamente da necessidade disso. Em determinado momento, começou a mudar a posição.
Mas, contato direto com os militares, a grande maioria não teve. Quem teve, porque eu queria que tivesse, porque era muito eficiente, era o Lysâneas. Mas ele não tinha limite no dizer as coisas. Dizia francamente tudo. Não dava.
Tivemos vários debates e disputas internas, quando eles (moderados e adesistas) se uniam todos e nos derrotavam. Nós conquistávamos com muita dificuldade espaços dentro do diretório nacional, da Executiva do partido. Mais tarde, eu cheguei até a ser secretário-geral do partido.
Como foi essa escolha?
Nessa época, em 1981, Ulysses queria barrar nossa participação. Fui secretário-geral do partido porque houve um atrito sério com Teotônio (Vilela, senador), que já estava no PMDB. Ulysses acertou com os grupos que Tancredo seria o segundo vice-presidente e Teotônio, o primeiro-vice. E ele, o presidente. Estava acertado.
De noite, Ulysses telefona. Eu já era da Executiva, mas não ocupava esse cargo. Convocou a gente. O pessoal de Tancredo exigia Tancredo na primeira vice-presidência e Teotônio, na segunda.
Teotônio se revoltou e eu fiquei com ele. Aí, no dia seguinte, quando Teotônio ameaçou sair do partido, foi uma brigalhada, né? Teotônio mandou chamar Ulysses, que estava presidindo a convenção do partido, que discutia a fusão entre o PP (Partido Popular) de Tancredo e o PMDB.
E Teotônio...
Nessa brigalhada, o Teotônio ameaçou deixar o partido. Ulysses não vinha falar com ele, no Senado. Aí ele mandou um recado para Ulysses, dizendo que ia chamar a imprensa pra dar uma entrevista, desligando-se do PMDB. Ele veio. Quando Ulysses disse que vinha, Teotônio pediu uma caneta vermelha. "Vou fazer minha chapa". Ele se retirava da Executiva, deixava Tancredo Neves lá e me jogava como secretário-geral. Isso pra causar uma confusão maior ainda.
Teotônio disse a Ulysses: "Aqui, ó, minha chapa é essa. Ou aceita, ou eu renuncio ao partido. Tô fazendo de caneta vermelha de propósito". Era um certo simbolismo do meu comunismo, né? Ele tomou um susto.
Ulysses recebeu a notícia e disse que não podia decidir sozinho, tinha que ouvir o Tancredo Neves. Tancredo estava interessado na fusão e, pra nossa surpresa, disse: "Perfeitamente. Pode botar o Chico Pinto".
Nunca tive atrito com Tancredo. Ulysses e eu tivemos vários. Mas confiava e gostava de mim. Eu sabia. E ele revelava. Um secretário dele, encontrando comigo um dia, em São Paulo, falou assim: "Sabe que o dr. Ulysses gostava muito do senhor?". Eu disse: "Desconfiava". "Mas era. Dizia que o senhor era uma pessoa séria. Brigava, mas gostava muito".
Eles dois mandavam firme. Uma vez, uns meninos que estudaram num país desses e não eram legalizados aqui, e precisavam ser, queriam que eu conversasse com o senador Marco Maciel. Com oito dias, ele já me telefonava, dando a resposta. Tô mostrando a rapidez com que agiam. Aí eu falei: "Dr. Ulysses, o nosso pessoal não anda." E dei o exemplo de Marco Maciel. Ele respondeu: "O que é que você quer? O Marco Maciel não come, não dorme, não bebe... Então tem tempo!". (risos)
Como surgiu a idéia da Anticandidatura de Ulysses e Barbosa Lima?
Nós tínhamos decidido, no grupo, e dialogamos com Ulysses e companhia, que nós devíamos participar da campanha (de 1974), sabendo antecipadamente da derrota. Havia aquele voto vinculado. Não podia votar contra, senão estava expulso do partido. Você sabia antecipadamente o resultado.
Combinamos o seguinte e eles aceitaram: o MDB renunciaria à candidatura na véspera da eleição. O acerto foi feito com Ulysses e o grupo dele, com o compromisso da renúncia da candidatura do MDB se eles não permitissem o uso do rádio e da televisão. Posição do nosso grupo: participar do processo era uma forma de estar conivente.
Acertaram tudo e depois recuaram. Sempre faziam um pouco o joguinho do outro lado. Geisel estava torcendo para o MDB ter candidato, porque a vitória dele seria consagrada como uma luta política entre a oposição brasileira e a ditadura.
Quem convidou Barbosa Lima (Sobrinho, jornalista e presidente da ABI), em primeiro lugar, fomos nós. Fui ao Rio de Janeiro com Marcos Freire, Lysanêas Maciel, Araújo, esse pessoal do Rio, convidá-lo a ser candidato à presidência. Depois é que eles fizeram um acordo. Saíram Ulysses, Nelson Carneiro e Tancredo à casa do Barbosa e o convidaram a ser o vice. Ele aceitou. Claro que Barbosa não estava muito a par dessas divergências internas.
O acordo não foi cumprido?
Qual era o compromisso? Usar o rádio e a televisão, e renúncia. Quando eles viram que o partido estava disposto a fazer confronto, o Tribunal Eleitoral decidiu que não era permitido o uso de rádio e televisão na campanha, porque o voto era indireto. Tirou o sentido de nossa luta.
Nós não votamos em Ulysses. No nosso grupo, nenhum. Vinte e tantos. A permanência tirou o efeito político de nossa luta. Serviu porque Ulysses se empolgou e começou a ser oposição. Mas oposição pra fazer comício. Não tinha o efeito de você ter usado o rádio e a televisão.
A BBC de Londres, quando terminou a votação, eleito Geisel... Aqui, aquela pressão toda, nós sabíamos que era difícil. Mas esperamos pra ver o que a BBC diria. Deu o resultado assim: no Brasil, foi eleito Ernesto Geisel, com tantos porcentos, MDB tantos votos e oposição brasileira: 23 votos". Ah, rapaz! Pulamos de alegria! Porque era a BBC de Londres reconhecendo que só havia uma oposição. E éramos nós do grupo Autêntico! (risos). Reconhecimento internacional.