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Lobisomem de Serrinha

LUBI DA SERRA: POVO DO SERTÃO CRIA EM MINHA ALDEIA O BECO DA COVID

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12/07/2020 às 11:47
 O jornalista Tasso Franco publicou neste domingo, 12, a sua 15ª crônica em seu livro "O Lobisomem de Serrinha, a nuvem de fogo e o fim do mundo" sobre  o Beco da Covid, no wattpad. A crônica pode ser lida abaixo. Todas as demais crônicas você lê no wattpad.

POVO DO SERTÃO CRIA EM MINHA ALDEIA O BECO DA COVID

Falo de minha aldeia de coração aberto. Exagero de minha parte. Coração não diz palavra e se aberto estivesse eu já teria morrido. As frases sobre minha aldeia saem do meu cérebro que também me ajuda a ouvir e a falar. Até ter gosto pelas mangabas, minha fruta predileta.

Não são dizeres da alma porque o que sobra em poética e inteligência, na arrumação do pensamento de Serafim Alves, renomado poeta, falta-me. Escapa-me com a minha burrice, minha eterna preguiça em pensar.

Também não posso me igualar ao pensador mor da minha aldeia, o filósofo Pato de Almeida refinado no entender a alma do povo, o que brota da sabedoria popular, o que emana dessa gente que parece boba, atabaroada, mas é sábia, profunda, tanto que, em plena pandemia do coronavirus, que mata, que assusta, que põe milhões em hospitais respirando por aparelhos artificiais, achou por bem batizar uma rua de nossa aldeia com o nome de Beco da Covid.

Como pode uma ousadia dessas, como enfrentar a poderosa OMS, como desafiar os nossas autoridades sanitárias, caçoar das ações do nosso alcaide Dr Silva, do digno secretário de saúde pública, Dr Tahim, os quais veem fazendo bom trabalho no combate à pandemia, protegendo os serrinhas, amparando-os, mas, se o dito vem do povo para designar uma rua que liga o antigo Largo da Usina a Igreja Matriz, e que em tempos idos era um beco morto onde pouca gente passava, área sede de nossa base das forças armadas, pois, por lá esteve sediado por anos, o TG 141, nas proximidades havia a tenda de Elias da Bota, o consultório dentário de Dr Ribeiro, a loja de ferros do Nunes e até hoje está a revenda de cimento do Neném, agora é um mar de gente a andar para lá e para cá.

Um multidão em comércio agitado mais do que a 25 de março paulistana o povo a desafiar o coronavirus como se não existisse, zombateiro, galhofeiro, altaneiro, a ponto de querer batizar essa artéria, antes secundária e sem valor como era a rua do Mercado, ao patamar de Beco da Covid.

Minha aldeia, sabem todos, os daqui e os de fora, até mesmo os de além mar, que é pobre até em geografia. Salvo, na geografia da consciência. Teria o Deus supremo colocado como atrativo apenas pequenas serras, nada que se pareça a um dede mindinho do Himalaia, a uma sombra do pico das Agulhas Negras, nem uma ponta dos Andes, daí que o povo, sempre esse sábio pensador, colocou-nos o nome de Serrinha, que são serras pequenas.

E o supremo, ainda há quem duvide dele, eu não, cristão que sou e temente igual ao Alckmin, não nos deu uma tira de mar, um rio para a gente ver passar, um riacho de fio d'água fino que fosse, uma lagoa de marrecos, nada em águas e florestas para nos embelezar, mas, ainda assim, fale com um serrinha qual a terra mais linda do mundo, qual o lugar melhor do mundo, e ele dirá que é nossa aldeia.

Paris pode ser a cidade da luz; Istambul a terra do mar de dois povos e berço de civilização; Roma, a eterna. Nenhuma delas nosso povo conhece. Só, e olhe lá, por imagens da televisão. Nenhuma delas bate na nossa aldeia. Não é dito por mim. Está nos versos do poeta Serafim, na arte visual de Maninho, na sanfônica do Chicão, na gaita do Braúna, na prosopopeia do astrólogo Bino, nos adivinhos de Cachoeira, o Sílvio, que já reside nos Anéis de Saturno, na oratória do Adelson, nos encantos da arte abstrata de Celestino, na viola sebastianista do Fábio.

Pergunte a um Lopes, a um Matos, a um Pinheiro, a um Oliveira, a um Passos, a um Roque, se segues a desconfiar de minha pena, aqueles todos meninos do Encontro dos Amigos de Serrinha, se há melhor lugar no planeta do que a Serra?

Duvida-se que algum deles diga que é Serra, à beira mar do Espírito Santo; que é Petrópolis na região serrana do Rio; Bento Gonçalves, na serra gaúcha; Zermat, ao sopé da montanha Matterhorn, Suiça; Charmonix Mont Blanc, na França; Funes, uma dolomita nos alpes italianos; nada, nenhuma delas.

A número 1 é a Serrinha do Beco da Covid, da Macário, do Morro da Santa, do Morro do Fundo, do Largo da Federação, da Zé Marcelino, da Coréia, da Manoel Novaes, do Beco da Lama, da Rua Direita, da Matança, do Matadouro e demais largos onde andam, vivem, comem e bebem do melhor.

Ah!, se ainda descrês, vá a Barão, rua que liga a praça Nogueira a linha do Trem. No final dessa artéria mora Rosa, a costureira e seu gato. Artesã da linha como outras milhões que existem no planeta. Viúva, sem nunca por os pés noutro lugar. Quando da morte do seu amor eterno e único, Pio, o relojoeiro, chorou a sós. Triste nunca esteve nem estará. Compreendeu o fim.

A Serrinha, esta sim, é a sua morada eterna, seu lar. Perguntem se ela conhece Trento ou a Cortina d'Ampezzo onde nevam e dizem ser dois belos lugares no planeta. Ela há de rir.

Se ainda estás a desmerecer do que vos digo nomino outros dos nossos, tradicionais em famílias pioneiras, os Santhiagos, os Mota, os Ribeiro, os Murta, os Carneiro, os Paes, os Gonçalves, os Fiúza, os Mangabeiras, os Caria, os Freitas para se quiseres tomem depoimentos. Ou adiciono nomes tradicionais emanados do povo, este ser fiel, mas, espezinhado, maltratado, explorado, e estão ai muitos dos Silva, dos Santos, dos Joaquins, Zés e Menuéis, que nunca ouviram falar em Manhatan, no Taj Mahal, na Eifel ou na Torre de Londres.

Vês, agora, esse movimento "Black lives matter" (Vidas negras importam) que surgiu com o assassinato de um negro em Mineápoles, George Floyd, e desencadeou uma onda de protestos contra o racismo no mundo ocidental e a derrubada de várias estátuas de escravocratas!

Nossa aldeia não se mexeu. Temos uma única estátua, um busto do jornalista cego Reginaldo Ribeiro posta ao lado da nossa biblioteca. Abandonada está. E quem há de mexer nela se nunca teve o dito sequer uma criada? 

Temos negros e muitos e a todos respeitamos. Negros no Praiano, no Matadouro, na Mombaça, no Mato Fino, na Flor Roxa onde teria havido um quilombo, na Bela Vista. E foram eles, muitos deles, os pioneiros vaqueiros e carreiros da nossa aldeia.

Como somos uma aldeia de paz e nunca fomos as guerras não dispomos de monumentos ao soldado desconhecido como há em várias partes do mundo.

Em 1822, quando Dom Pedro I, proclamou nossa independência de Portugal não houve guerra. Só um grito. Os nossos bravos guerreiros prontos estavam para um embate, mas, ficaram à espera de um confronto que não houve.

Em 1823, a guerra da independência da Bahia, não houve guerra. Apenas um cerco a tropa de Madeira de Mello. Não nos deslocamos da Serra. Na Guerra do Paraguai, de Dom Pedro II contra Solano Lopez, os nossos lá não foram. Na Guerra de Canundos assistimos apenas as tropas de Moreira Cesar passarem pela Estação do Trem rumo a Queimadas. Na I Guerra Mundial muito distante para nós. Na II Guerra Mundial mandamos dois bravos, mas, foram rejeitados porque nunca haviam dado um tiro de fuzil

 Nossa bandeira, pois, é a da paz. E não será agora, como querem alguns, abrir discórdia com a Organização Mundial de Saúde (OMS) denominando uma das nossas ruas de Beco do Covid. Deixem essa briga da OMS com o Trump. Que esse beco só traga tudo de bom para nosso povo.

Há sugestões, partidas de alguns próceres, dito do Pinguinha Flores, no sentido de que haja uma solenidade de inauguração do beco com a presença da Filarmônica 30 de Junho, autoridades da Serra, da Bahia e do Goiás Velho, quiçá do Messias, ou de uma nobre representante que seja a senhora que vê Deus numa goiabeira, arranjos de flores, mangabas e cajus para o povo e desfile da Banda de Pífanos de Zé de Bilia, em cortejo, com seus membros em traje de pompa e bonés engomados com clara de ovos.

Rejeito tal proposta assim como engavetei uma lista a me enviada pelo causídico Zéu de Itaberaba dito que já soubera do Beco da Covid e da grandiosa festa e que, se assim existir, deveriam convidar personalidades da cidade da Bahia, o jornalista Pina Dourado, o poeta Mendes do Passé, o conselheiro Souza de Todavia, o médico Maurício de Tebas, o jurista Ferdinando Venet, o escritor Benivaldo Freitas, o cientista Augustus Abreu e mais outros a lembrar a posteriori.

Tomo da pena do poeta Serafim Alves para colocar as coisas nos seus devidos lugares perante a história: O Beco da Covid,  na Serrinha, é uma invenção do povo/ Um topônimo, uma arrelia, uma bazófia/ Que fique apenas conosco, na intimidade de nossa aldeia/ Ninguém mais há de saber, e se o souber, fique sem entender/ Somos únicos no planeta, querida terra minha/ Viva a Serrinha.