Cultura

ROSA DE LIMA COMENTA MINHA VIDA DE JASMIM, DE DIMITRI GANZELEVITCH

Dimitri Ganzelevitch, natural do Marrocos de família franco-russo-ítalo-inglesa e que mora na capital da Bahia, em Santo Antônio Além do Carmo, desde 1975.
Rosa de Lima ,  Salvador | 13/09/2025 às 07:31
Uma prosa poética de ótima qualidade
Foto: BJÁ
   Seguimos falando de autores da Bahia ou que residem na Bahia vindos de outros estados e países e que adotaram a cidade do Salvador (e a Bahia) como sua morada e integram o cenário da cultura local. É o caso do africano Dimitri Ganzelevitch, natural do Marrocos de família franco-russo-ítalo-inglesa e que mora na capital da Bahia, em Santo Antônio Além do Carmo, desde 1975. 

   Cronista, crítico gastronômico, fotógrafo, produtor cultural, defensor das tradições e do patrimônio arquitetônico do centro histórico de Salvador é um eterno inconformado com as aberrações que avançam pela cidade.

  Dimitri, 89 anos de idade, é dessas aves raras que ainda povoam a cidade do Salvador e está sempre a nos oferecer uma visão bauldeleriana da capital baiana, um olhar crítico mais aguçado antes que as picaretas do progresso derrubem tudo em nome de uma modernidade suspeita e que ao invés de melhorar o visual de logradouros faz é piorar ou criar monstrengos que enfeiam o ambiente, como o Edifício Themis na Praça da Sé e tantos outros no centro histórico ampliado, da Barra ao Além Carmo.

   Enquanto isso, ano a ano, o patrimônio arquitetônico antigo desaba como aconteceu recentemente com o teto da Igreja de São Franciso, matando uma turista paulistana e continua no chão ou quase isso necessitando de reparos. Recentemente, também, o Museu de Arte Sacra da UFBA foi interditado antes que caísse na cabeça de alguém.

   Mês passado, Dimitri Ganzelevitch publicou o livro “Minha Vida de Jasmim e outras crônicas” (Azeviche Design Editora, BA, prefácio e capa de Nildão, fotografias do autor, Maria Helena PS e André Jolly, 188 páginas, R$50,00 à venda na Livraria do Solar Santo Antônio, Carmo) em que narra sua trajetória de vida desde o nascimento em Rabat, Marrocos, 1936, com passagens por Casablanca, Madrid, Lisboa, Paris e Londres e morada definitiva em Salvador, no Santo Antônio Além do Carmo desde 1975, e no Solar Santo Antônio, mesmo bairro, desde 1986.

  Um amor que nasceu depois de ouvir o disco de Dorival Caymmi e a interpretação “Maracangalha”, em Lisboa, onde vivia, graças a viagem do seu padrasto português a Salvador na década de 1960 que levou consigo vários discos baianos para a capital portuguesa e Ganzelevitch se apaixonou.

   Em 1971, empreendeu uma viagem a Salvador onde, em visita a casa de Jorge Amado, na Rua Alagoinhas, Rio Vermelho, 1971, conheceu Caymmi e um pouco da baianidade nagô, retornando a Europa e refazendo as malas para voltar a Bahia, definitivamente, em 1975.

  E quem ganhou com isso foi Salvador porque nada melhor do que um critico de fora para enxergar a cidade com outros olhares, com conhecimento de causa, vivência, erudição e atenção ao popular, tanto que Dimitri seu abjurar a sua raiz do mundo clássico europeu das operas e das galerias da arte clássica, se encantou com a Bahia popular e é ideiasua a criação do Concurso de Penteados Afro-Brasileiros, na escadaria da Igreja do Passo; do Concurso de Guias e Carros de Cafezinho, no Mercado Modelo; e do Concurso de Barracas de Festas de Largo, na Conceição da Praia.

   Sobre o livro que leva o título “Minha Vida de Jasmim” retirado de sua paixão por essa planta que emoldura sua residência e serve de inspiração e acalento, o faz também lembrar como diz  “de outros jasmins que pontuaram minha vida” e cita “jasmim dos jardins de Istambul, dos pátios mexicanos, dos conventos sírios, das vermelhas falésias dos Algarves” e do seu “pequeno pé de jasmim trazido da Quinta Pitanga, em Itaparica, trepadeira que foi crescendo, crescendo e hoje chega, debochada, em forma de leque, até o terceiro nível da casa ()... sombra amiga nos dias de calor, pouso obrigatório para cambacicas, rolinhas, bem-te-vis e beijas flores. Vez ou outra, hospeda um casal de periquitos ou alguma cacatua fugitiva. Lá em cima voam gaviões e urubus”. 

   Esse texto e outros do livro são uma prosa poética, lírica, primorosa, ainda que o autor tenha sido econômico em mais dizeres sobre Salvador, sitio que tem muito a contar e um cabedal enorme de textos já publicados em A Tarde e outros locais.

   É provável, imagino, que outras obras virão nesse contexto.

  Nada disso tira o mérito do “Minha Vida de Jasmim” sobretudo nas pinceladas que o autor confere desde os primeiros dias de sua vida em Rabat, Marrocos, as andanças por Casablanca, também Marrocos, e passagens pelo mundo europeu desde Paris a Lisboa, Cambridge, Londres, Madrid, Alepo (Síria), Damasco, etc, descrevendo um pouco de cada vivência. 

   Os leitores certamente vão se admirar com a erudição e gosto refinado do autor, a vida entrelaçada com momentos da cultura e personagens das artes e das letras, também da música, e o fluir da vida comum, do cidadão simples que anda pelas ladeiras do centro histórico a pé ou viaja a outros bairros de buzu, com lembranças do dia a dia bem sutis e agradáveis.

  Eis o que diz, por exemplo, na crônica “Vou de táxi!” uma das mais deliciosas do livro: “Já comecei errado. Sim, porque geralmente não vou de táxi, mas de ônibus. Só quando estou abonado e com especial pressa é que chamo Beto, meu vizinho taxista e amigo bom de papo. Já sei. Um monte de leitores deve estar torcendo o nariz, porque ônibus é transporte para pé de chinelo. Não uso havaianas, mas é verdade que nestas latarias nunca encontrei ninguém que frequentasse vernissages e concertos. Esta minha falta de preconceito provém do fato de, após 35 anos de baianismo, ainda ser gringo”.

  Hoje, são 50 anos de baianismo e, o incansável Dimitri em sua segunda melhor crônica do livro intitulada “Se esta praça fosse minha” (opinião da cronista que o leitor pode discordar) fala da Praça da Sé e narra: “Como se pode descaracterizar tão bela dama ao vento dos caprichos de administrações contraditórias...Cada vez mais se parecendo com foto de coluna social, pele esticada, sorriso dentudo e olhar fixo. Já vi tantas intervenções absurdas, incoerentes, predatórias e custosas, que me é possível ouvir o lamento das pedras de um espaço que deveria ser o ágora sagrado de nossa capital”.

  É o estrangeiro-baiano falando de “nossa capital”. Completamente integrado e indignado e diz: “Se esta praça fosse minha organizaria uma feira de pintura primitiva aos sábados. De livros, discos e roupas usadas aos domingos. Convidaria grupos de roda de samba, teatro de rua, poetas, mamulengos e marionetes, equilibristas e palhaços. Faria um coreto com bandas militares para alegrar o fim do expediente” e completa sua crônica dando outros exemplos de como a sala de visita da cidade seria uma praça de cultura.

   Para fechar nosso comentário e deixar que o leitor aproveite o máximo do livro sem que eu lhe tire esse prazer expondo mais textos do autor, diria, com certeza, que a melhor crônica é a que dá titulo ao livro “Minha Vida de Jasmim”, um primor, uma doçura que encerra a obra com essa frase que considerei sublime:

 - Quando for, enfim, transformado em leves cinzas, quero-as espalhadas à volta de meu pé de jasmim e, assim, alimentando suas raízes, reencontrar minha infância perfumada”.

   Que dure bastante tempo ainda para apreciarmos a distinção de sua pena.