Hugo Mãe é um dos mais destacados autores portugueses da atualidade e “Deus na escuridão”, 2024, é o seu romance mais recente
Rosa de Lima , Salvador |
15/08/2025 às 20:24
Valter Hugo Mãe, A máquina de fazer espanhóis
Foto: BJÁ
O escritor português Valter Hugo Mãe foi um dos destaques da FLIP, a recente edição da feira literária de Paraty, Rio, quando participou de uma conversa com o jornalista Valter Porto, da Folha de São Paulo, sobre sua obra e a adaptação audiovisual de “O filho de mil homens” (Biblioteca Azul, 2016), o longa com direção de Daniel Rezende, que deve estrear na Netflix ainda neste 2025.
Hugo Mãe é um dos mais destacados autores portugueses da atualidade e “Deus na escuridão”, 2024, é o seu romance mais recente. Não saberia dizer qual seu livro mais famoso. No Brasil, diz-se que o mais vendido foi “O filho de Mil homens” e um dos mais badalados em Portugal foi “O remorso de Baltazar Serapião” (2006), que ganhou o Prêmio José Saramago. Diria que a linguagem usada por Hugo Mãe se assemelha a de Saramago, o que não deixa de ser salutar.
Mas. Não é uma cópia. Hugo Mãe tem muito talento e o que vamos comentar para o BJÁ é uma das suas obras mais queridas e intitulada “A máquina de fazer espanhóis”, 2010, vencedor do Portugal Telecom de Literatura (hoje, Prêmio Oceanos) primeira edição da Cosaf Naify, 2011 (Biblioteca Azul, 2016, direitos da Editora Globo, 257 páginas, prefácio de Caetano Veloso, R$47,50 no portal Amazon) um livro encantador que fala da família portuguesa tradicional que conviveu com a ditadura salazarista personificada no pensamento e vagar de ideias do barbeiro Antônio Jorge da Silva, aposentado, a viver num lar de idosos, ou da Feliz Idade, convivendo com outros velhos e a proximidade da morte.
Silva era a imagem do bom português ou ele e outros os bons homens que aturaram o fascismo sem se rebelarem em nome de um Portugal família cristã amparado pela igreja e a fé nos santos, bem comportados que foram durante o regime de Salazar, embevecidos que também eram do Benfica e do Porto, glórias nacionais, das tradições portuguesas e dos atrasos seculares, velho amante inveterado de sua esposa, fidelíssimo, ela que partira antes dele e estava sempre (ele) a lembrar de sua existência.
O livro apresenta um painel da vida portuguesa do pós-II Guerra Mundial e o autor faz uma inteligente crítica ao fascismo, ao salazarismo, ao reacionarismo português, a igreja católica e seus bispos e padres, é hilário com a fé nos santos e com o sentimento tradicionalista português e traça um perfil de uma época ditatorial em que se vivia aparentemente bem, a tradicional família portuguesa, e o ambiente era de repressão, tortura e mortes para aqueles que se contrapunham ao regime. Tudo isso o autor o faz com uma sutileza de detalhes, uma linguagem saramaguiana, o que é de imenso agrado para os leitores.
Assim penso e assim me senti ao ler “A Máquina de fazer espanhóis” delicada crítica social e política aos patrícios e naquela época muitos ´portugueses queriam ser espanhóis, alemães e/ou franceses (morar na França era uma opção de melhores ganhos salariais) e aqueloutros como o próprio Antônio Jorge Silva. o senhor Pereira, Elisa, Dona Leopoldina, doutor Bernardo, dona Glória do linho, viviam resignados, a lembrarem-se de um tempo do passado no final de suas vidas.
Narra o autor no capitulo sete que deu o título de herdar Portugal (Hugo Mãe escreveu todo o texto em caixa baixa): “nós fizemos tudo pela igreja porque as convenções, à época, eram muito mais rígidas do que aquilo que a frescura de nossa juventude nos permitia almejar, ainda nos marcavam as heranças castradoras de uma educação com idas à missa, mas, sobretudo, uma dificuldade em cortar com o que os outros esperaria, da nossa conduta. de todo modo, a laura descobriu rapidamente aquele gozo universal das noivas, aparecendo de branco e deslumbrante entre folhas e camadas de tecidos como um bolo feliz dando o braço ao pai e percorrendo o caminho até o altar”.
“mas em 1950 as coisas não estavam ainda definidas, é isto que tento dizer. o certo e o errado eram difíceis de discernir: pois o benfica ainda não se fizera o glorioso, nem Salazar parecia ainda o estupor que o povo pudesse reconhecer cabalmente. não sabíamos nada. haviamos passado ao lado da guerra e parecia que a vida se protegia no país das quinas, igual a termos uns muros na fronteira, um peito viril erguido contra malandros estrangeiros, e foi assim que nos casamos cheios de vivacidade e entrega ao futuro num país que se punha de orgulhos e valentias”.
Eis, pois, dois trechos do contexto posto por Hugo Mãe em sua crítica política um não vivaz ao “viva Salazar, visa salazar maria imaculada mês de maio mês dos lírios e das rosas mês de maria coração de maria, dai-nos vosso amor santa maria...” que permeia toda a obra ou como prefaciou Caetano Veloso “a complexidade dos sentimentos relativos à vida e à politica que são o espírito do livro”.
O leitor, em sentido amplo, vai perceber isso desde o inicio do livro até os últimos capítulos num crescente imaginativo extraordinário, a cada página sentindo mais prazer em lê-lo, se deliciando com as expressões do português de Portugal, diferenciadas do português do Brasil, ainda que entendíveis e louváveis, tais como “estar por ali metido” ou “anda para ti tudo ignorante dessas coisas” o que é uma delícia, dá um imenso prazer.
Como bem expressou Caetano Veloso ao prefaciar o livro: “A fortuna critica e o sucesso abrangente deste romance no Brasil exigem feições comoventes. Momentos profundos das relações afetivas entre Brasil e Portugal, a Máquina de Fazer Espanhóis um livro tão exclusivamente português, com seu linguajar coloquial lusitano e suas referências às intimidades da vivência da história política de Portugal, faz o leitor brasileiro mergulhar na dimensão portuguesa de sua vida, reencontrar origens de tantas das suas fraquezas em face de um grande sonho – e de tantos enternecimentos em face de se sinceras modéstias”.
No cutucar de Hugo Mãe nos capítulos finais: “Somos portugueses. Somos todos portuguesas. Estamos livre de Franco”, disse o espanhol Enrique português de Badajós e o inspetor Jaime Ramos franziu o sobrolho e não conteve uma resposta:.
- Ó senhor, ainda há disto? Estávamos bem era a falar castelhano, como salários castelhanos e uma princesa bonita para as revistas. Que filho da mãe de erro este de proclamarem soberania nos arredores de uma península”.