Cultura

ROMANCE "A PSICÓLOGA",TF, C19: O MARCENEIRO ROQUE E A PENEIRA NO SOFÁ

Sinto-me uma pluma como as penugens novas dos cardeais de nossa serra; ou ajo também como o voo rasante dos gaviões que descem do céu como foguetes, mergulham no espaço
Tasso Franco , Salvador | 12/08/2025 às 09:45
Roque se distrai no sofá e não dá a mínima ao pastor na TV
Foto: Seramov
  CAP 19   
  ROQUE A CAMINHO DO SÉCULO XXI E A PENEIRA NO SOFÁ 

  Ohana:
  
   Creio que poderia terminar minha narrativa no capítulo 18, assim penso. O jornalista- escritor, no entanto, insistiu para que conclua a prosa mais adiante, pois, no seu entendimento ainda há muito a por em linhas retas ou tortas que sejam, que fluam de mim. 

  Sinto-me uma pluma como as penugens novas dos cardeais de nossa serra; ou ajo também como o voo rasante dos gaviões que descem do céu como foguetes, mergulham no espaço e alcançam o solo com suas garras para capturarem algum rato ou sariguê mostrando toda a perícia. Sou, portanto, uma ave de rapina, ágil e vibrante; e também a doçura e a beleza dos cardeais. 

   E, assim, sendo, não teria muito mais a contar, salvo o desejo eterno de me manter ligada ao meu Roque e ele a mim, até digo e já prometi a minha sobrinha Sol que se ele faltar a terra e subir ao céu, outro homem jamais vou querer como companheiro, pois, sei de mim, que igual a ele não existirá e não será nem igual, muito menos melhor. Pretendo, pois, cumprir minha missão final na terra sozinha e com os meus mais próximos e tenho fé que Alicinha há de me conceder netos e netas, tenho Sol como testemunha e minha guardiã, ela que também já em promessas sacramentada me garantiu me levar para assistir uma ópera em Paris, eu que nunca vi nem sei o que é opera. 

  Também  tenho a fé em Deus que um dia, se a mega sena me ajudar e cravar as seis dezenas, pois, só tenho feito um número em cada jogo que faço, no simples semanal de 7 reais que jogo, eu e o Roque haveremos de ir a Portugal, meu sonho, sonho poético e não sonho atormentador com cobras e bruxas, conhecer o local onde nasceu Santo Antônio que é um santo querido neste sertão e ir até a cova da Iria no santuário da minha mãezinha senhora de Fátima, e quem sabe, navegar no Douro e beber um Porto na cidade do mesmo nome que dizem ser um ótimo vinho.

   Assim, com esses pensamentos tontos, flutuando em alegria compareci ao trabalho na marcenaria ao lado do meu Roque para cuidar dos deveres de casa, dos negócios e da contabilidade que consome os meus dias com notas, relatórios, balancetes e outros que entrego com regularidade ao contador Joel, e sempre ouço elogios de Roque ao meu trabalho que “sem mim ele não existiria”; e está sempre pedindo para eu descansar o corpo numa cama, ir relaxar, “vá descansar mulher você está com olheiras” e eu nem ligo e Sol quando está aqui em casa arrelia que “nem na outra encarnação ele terá uma mulher dessas”,  e ele responde que voltará na Turquia e eu dou risadas imaginando ele com uma turca montado num camelo lá pelo ano 2150. 

   Quando estou nesse devaneio o telefone toca e eu atendo a senhora Fonseca nos desejando saúde e felicidade e dizendo que nós fomos sorteados entre os seus fornecedores para passarmos uma semana de férias numa pousada da praia de Atalaia, em Aracaju, no verão que se aproxima, tudo por conta da sua empresa, e mais ter o prazer de nos receber, uma noite que seja, num jantar em sua residência de praia na Atalaia Nova. 

  Exultei. Disse a distinta madame que iria comunicar a Roque e faríamos o ajuste necessário a tal demanda, que, no momento estávamos concentrados nos pedidos para a entrega dos festejos de final de ano, do Natal, época de casamentos quando fabricamos algumas mobílias, participamos da Feira de Móveis e Utensílios do Pombaleiro e produzimos peças mais em conta, populares, para a venda na feirinha semana da Praça da Capela, quando vem gente de várias localidades ao nosso povoado, daí nosso trabalho aumenta e contratamos mais operários.

   É também tempo dos umbus, das mangas e dos cajus, da fartura em frutas tropicais, das comemorações ao Menino Jesus, da missa do Galo, da venda de objetos de barro pelas senhoras do Barreiro que produzem manjedouras, cavalinhos e burros, réplicas de homens e mulheres, panelas, imagens dos reis magos, e eu e Roque montamos nosso presépio na sala da casa que é motivo de atração no povoado e deixamos a janela da sala aberta para a população espiar e dá um trabalho enorme fazer a lapinha, montar o presépio, colocar as dezenas de pecinhas que temos, e por incrível que pareça até uma praia colocamos com areia cessada e búzios.

   Na semana entrante do dezembro também recebi uma mensagem de Alicinha dizendo que viria para o Natal e traria consigo uma amiga trans, uma professora de literatura que conhecera na Universidade Sergipense (US), ativista, ambientalista, uma intelectual e eu fiquei a pensar porque ela fazia tantos elogios a essa pessoa e o martelo da minha intuição bateu logo na minha cabeça de que ela estaria de amores por essa professora que, segundo ela era oito anos mais velha, 28, linda demais, educada, e procurei saber se ela estava caída pela trans e se já tinha havido alguma experiência adiante e ela me garantiu que “estamos nos conhecendo, ainda, mãe” e eu falei que ela não precisava lhe falar que a garota era trans, e ela respondeu que falou porque sabe como Roque é, e eu disse que Roque está mudando, que Roque era quase um marceneiro do século XXI, mas que nós moramos um povoado conservador, e se essa trans fosse no modelo exibicionista não seria conveniente trazê-la, e ela me garanti que era discreta, que ninguém ia saber que ela tem pinto, e mais, que tem rosto de mulher, seios de mulher, pernas lisas de mulher, sovacos brilhantes, poetisa, que adora Fernando Pessoa, Victor Hugo e Baudelaire, leitora das obras de Jorge Amado e especialista em Graciliano Ramos, que ama a natureza, defende o meio ambiente e as baleias.

  E eu respondi que de minha parte estava consentido que viesse e falaria com Roque, e também lhe lembrei que somos pessoas comuns, que eu só li dois ou três livros na vida por ser obrigatório, no ensino do segundo grau, um deles, Capitães de Areia, de Jorge Amado, e que conversas conosco nessa direção seria limitada, porém, de meio ambiente e da natureza entendemos e poderíamos leva-la na Serra dos Cardeais, na gruta, da fonte da purificação das almas, na Barra do Vento e se aqui não temos baleias, temos quatis, preás, cobras, bruxas e lagartos todos preservados pela mãe natureza.

  Eis, pois, que o jornalista-escritor tem razão e vejo-me diante desses dois novos fatos, o que vai prolongar o livro e creio que os leitores vão gostar, porque leitor adora esses mexericos, a citar, primeiro o convite da Rede Fonseca de Lojas e o segundo de Alicinha que teria que combinar com Roque  e assim fi-lo num dia em que estava no modo pluma de viver, levíssima, doida para receber um agrado penetrante na minha grutinha do amor e me preparei para isso e também coloquei no forno umas costeletas de porco para assar e uma garrafa de vinho pra gelar, vinho que adquiri em segredo na padaria de Sêo Badu, a meu pedido, que importou pela internet, disse-me ele ser do Chile, dos melhores, e seria, assim penso, a introdução de Roque no século XXI, pois um marceneiro não é só pra ficar tomando brahma e jogando dominó, tem que degustar vinho e aprender o jogo do xadrez.

  Digo-vos que tudo deu certo e numa noite de sábado depois do trabalho, me perfumei toda imitando Cleópatra e Roque ficou de queixo caído e depois que tomei duas taças do tinto, comecei a me jogar em cima dele que estava no sofá vendo televisão e ele dizia “você vai me matar mulher”; “você vai sofrer um acidente”; “cuidado com minha coluna”, “vixe vai quebrar meu óculos” e nos embolamos no dito sofá e Roque desembainhou sua espada e lancei o vestido as favas e fomos a luta com valentia e garbo, e num momento em que estávamos no bem bom, Roque dentro de mim me estocando como  machucador de ervas do meu pilãozinho de bronze, toquei com a perna no controle da TV e apareceu na telinha um pastor evangélico citando versículos de apóstolo Paulo e eu procurei não me desconcentrar, via que Roque não dava a mínima para aqueles dizeres, mas eu segui um pouco irritada e revirei meu modo serpente e Roque pedia para eu peneirar, para eu fazer como as mulheres da casa de farinha que balançam a peneira de um lado para outro e cessar, refinar o produto, e eu fui peneirando, requebrando, mexendo o quadril o mais que pude e aproveitei o embalo e chutei o controle na tentativa de desfigar a TV e mandar aquele pastor para os quintos do inferno, e acertei meu dedão do pé direito numa estatueta com dois macacos de bronze que tenho na mesa de centro, por sorte, a cabeça da macaquinha, na queda, se chocou com o interruptor da TV, desligando-a, e eu continuei cessando a peneira até que a farinha fina me encheu de alegria e Roque revirou os olhos simulando perda de forças e desmaiando em sonhos.

   Terminada essa contenda, sentados à mesa e com o porquinho bem assado, meia garrafa do tinto a consumir, taças de plástico a encher, contei-lhe o que se passava com Alicinha e a possível ficante e o convite dos Fonseca para irmos a Aracaju e Roque, matutou pra cá; matutou pra lá e disse que não tinha nada contra as duas demandas, iria pensar com mais calma, elaborar com mais atenção, e quis saber como também eu já tinha perguntado a Alicinha se a tal da trans era como algumas que vê em novelas estilosas e chamativas ou se eram discretas, e se ela iria fazer algum teste em sua casa na noite de Natal. 

 *** No próximo sapitulo - As meninas chegam para o Natal