Alicinha descobre um novo mundo ao estudar psicologia e passa a conhecer o inconsciente do cérebro
Tasso Franco , Salvador |
10/06/2025 às 09:06
Alicinha estuda o livro a "A Interpretação dos Sonhos de Freud"
Foto: Seramov
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A CARTA DE ALICINHA E O LIVRO DE FREUD
OHANA
Desde que Alicinha foi estudar em Aracaju nós mantemos contato permanente com nossa filha pela WhatsApp essa nova tecnologia da internet que é gratuita e ajuda muito na comunicação. Falamos eu e Roque. E, na maioria das vezes, eu e ela - as confidentes.
Já lhe narrei em segredo os últimos acontecimentos, os novos sonhos com a cobra, o encontro com a bruxa Calona, o que a cigana me falou da leitura de minha mão desde a roda da fortuna ao baú do amor, da postura de Roque em nada acreditar achando que eu estou ficando azoada da cabeça e estaria precisando de uma rezadeira, de uma pessoa – como ele diz – “que tire esses espíritos malignos da sua cachola”.
Alicinha me acalenta, me aconselha e recomenda que eu não deva procurar a rezadeira, acha essa história da bruxa voadora estranha – ao que parece, ela também não acredita – e vê um exagero de minha parte a possibilidade de haver uma traição entre eu e Roque, entendendo que ainda vivo traumatizada com a morte dos jovens na Dom Miguel e pede que tenha calma e prudência na vida.
Eu não costumo contestar Alicinha e mais cautelosa do que sou é impossível para uma mulher. Fui praticamente forçada a contar-lhe mais uma novidade, o fato de ter capitado uma mensagem de uma suposta cliente da nossa marcenaria dizendo ser de Aracaju, que aprecia muitos nossos móveis e os vende em suas lojas, dela e do marido, com a ousadia de dizer que gostaria de nos visitar para conhecer nossas instalações e o “bonitão” do dono.
Ora, bem que ela poderia dispensar esse “bonitão”, primeiro porque ela não conhece pessoalmente Roque, o máximo que apreciou, se assim o fez, foi tê-lo visto em nossa mensagem do Natal passado quando eu e Roque aparecemos juntos desejando uma feliz comemoração e um próspero ano novo.
Ademais, se ela é uma empresária ou casada como o dono da Rede de Lojas Fonseca, essa sim, nosso cliente, deveria ser mais discreta e não se insinuar para meu esposo.
Diria, ainda, que fiquei mais chateada – e essa parte não falei para Alicinha – porque Roque respondeu a essa sirigaita dizendo que teria imenso prazer em receber a formosa madame em nosso “templo de trabalho”. Palavras dele que mostram uma insinuação malévola daí que, na minha concepção, os sonhos das cobras só atestam que, de fato, há uma trilha de traição no ar.
Aqui para nós, só para os leitores, engoli a seco gravei na memória os escritos, pois, sabia que ele iria deletar rapidamente os dizeres – como de fato aconteceu – e fiquei na minha, porém de olhos bem abertos.
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Sessenta dias após Alicinha iniciar o curso de psicologia recebemos uma carta pelo Correios na qual ela contava como é sua vida em AJU. Como não tem nada demais vou publicar aqui para vocês lerem.
- Queridos pai e mãe: a saudade é imensa de vocês embora eu não esteja tão distante como se fosse morar em São Paulo. Aracaju é praticamente nossa vizinha, nossa segunda capital. Daqui pra casa é um pulo.
Ainda assim morro de saudade, do aconchego de vocês, de nossa casa, do meu quarto e do nosso gato Tom. Morar numa pensão é bem diferente ainda que a senhora Alzira, a dona, seja uma pessoa amável, uma espécie de segunda mãe de nós, porque somos 6 mulheres que vivem na casa dela.
Nos dois quartos que aluga são três meninas em cada dependência e a privacidade é bem limitada, uma vez que a gente ainda está se conhecendo e cada pessoa tem um tipo de comportamento da outra.
Estava acostumado a ter o meu cantinho só meu. Minha penteadeira, meu armário, meus brinquedos bibelôs na estante, agora, temos que dividir tudo. O armário de roupas é para as três e cada um tem seu cantinho, a sapateira é coletiva, a casa só tem um banheiro para as seis fora o da dona da pensão, então, tivemos que nos disciplinar porque as outras meninas são também do interior da Bahia e de Sergipe e viviam em suas casas como eu e tiverem que se reciclar.
Mas, a gente vai vivendo e aprendendo. Eu não me queixo e me dou muito bem com minhas duas colegas de quarto, a Eliza estuda história e a Magda medicina e vamos cumprindo nossas tarefas.
O curso de psicologia é bem puxado e a bibliografia imensa e cara, mas, graças a Deus a biblioteca da Faculdade tem todos os livros e me socorro nela. Para minha mãe, em participar, quero lhe dizer mãe que estou lendo o livro de Sigmund Freud sobre a “Interpretação dos Sonhos” – o famoso livro verde publicado em 1900 - para tentar entender porque a senhora sonhou com a cobra engolindo meu pai e está apavorada até hoje achando que vai acontecer alguma coisa com ele.
Ainda estou no meio do livro que tem mais de 700 páginas e é muito complexo. Posso lhe falar desde já, segundo o que diz Freud, que a senhora não deve ficar apavorada porque são coisas do inconsciente e no livro tem muitas explicações sobre isso, mas ele também relata que o “sonho é a realização de um desejo” e vou estudar esse “fenômeno psíquico” ler e entender esse autor para quando ir de férias no meio do ano, na nossa festa de São João, poder lhe explicar melhor.
Pelo pouco que já estudei da psicologia, o básico do básico, afinal estou somente no primeiro semestre, essa ciência explica muitas coisas da cabeça, desvenda muitos mistérios, tudo com base em experimentos científicos e estou adorando entender esse mundo novo que se abriu para mim.
Tenho certeza que serei uma profissional dedicada e valorosa, pois, a empatia que tenho com os estudos iniciais é muito grande e creio que isso ajuda, essa simbiose é fundamental.
A escola é puxada, os professores exigentes, temos muitos trabalhos em grupos e marcados testes, portanto, ainda não deu para ir a alguns lugares que gostaria de conhecer na cidade, a famosa praia de Atalaia, a ponte do Imperador, a catedral, o mercado municipal de artesanato. Como não são minha prioridade vou deixando para quando for possível, sem me preocupar. Meu foco são os estudos e tenho convicção de que tudo dará certo.
Beijos de sua querida filha, Alicinha.
A RESPOSTA DA CARTA
Diria aos leitores deste livro que a carta que recebemos de Alcinha nos emocionou bastante. Li ao lado do Roque e choramos no seu término mais por motivos de alegria, de satisfação e de prazer. E, juntos, expressamos nossa saudade. Respondi a carta colocando algumas opiniões de Roque, mas, também, com opiniões confidentes, de mãe para filha, sem o conhecimento do pai.
Nossa adorada filha Alicinha,
- Que Deus a proteja e que todos os seus sonhos sejam realizados. Nós também sentimos muito sua falta e todo vez que entro no seu quarto lágrimas escorrem por minhas faces. Tem sido muito difícil para nós essa separação.
Tio Damasceno outro dia consolou Roque dizendo que a vida é assim mesmo, repetindo o que já havia dito certa época “que os pais criam os filhos para o mundo e não para eles”. Portanto, que fossemos nos acostumando com isso.
Citou inclusive um amigo dele chamado Deraldo, o qual tem uma filha que mora no estrangeiro e isso é ainda mais doloroso porque tem anos que ela não vem ao Brasil nem ele pode ir lá, pois, além de não ter dinheiro para uma viagem dessa natureza, mesmo que tivesse não iria porque tem medo de avião, embora nunca tenha visto um avião. Felizmente você está perto da gente e em breve retorna para as férias e isso será muito bom.
Adoramos que você esteja gostando do seu curso de psicologia e também de sua preocupação com meus sonhos com a cobra. Vez por outra ela reaparece, o que, de fato me tem deixada apavorada desde que Damasceno falou que quem sonha com cobra será traída.
Fico sempre pensando se o Roque, a quem amo tento, está se entusiasmando por alguma mulher e esse meu ciúme aumentou muito depois que essa suposta madame enviou uma mensagem dizendo ser dona de uma loja de móveis, em Aracaju, cliente nossa, e que gostaria de conhecer a nossa oficina. E recebe uma resposta atrevida de seu pai.
Temo que essa senhora apareça por aqui perfumada, elegante, usando óculos escuro parecendo aquelas atrizes de cinema que a gente vê na televisão e seduza Roque. Vai ser um inferno.
A saliente, pelo WhatsApp, teve a petulância de perguntar – e isso seu pai não sabe que eu sei - se podíamos fornecer móveis em maior quantidade, se poderia encomendar camas no estilo king, que ela adora. E eu achei que Roque gostou da ideia, ficou todo sonso e respondeu que a nossa empresa está apta para satisfazê-la, com prazer.
Ora, na resposta, sendo empresário, não precisa ter colocado esse adendo, o “prazer”, e meu ciúme explodiu.
Tudo indica que é a miserável da cobra que está provocando tudo isto, embora Roque se mantém sereno, calmo, como se nada tivesse acontecido. E só me contou que a Rede Fonseca está querendo ampliar as encomendas, mas, sonegou qualquer referência essa insinuante senhora.
Não acredito que esse senhor que você citou deste livro que interpreta os sonhos, Freud, que nunca ouvi falar nele e não sei se é estrangeiro ou de São Paulo, que é a terra em que tudo acontece neste país, pode resolver alguma coisa, decifrar algum sonho.
Creio que pode até ser algum estrangeiro desses sábios ganhadores de prêmios que vemos na televisão, mas duvido que tenha mais conhecimentos práticos do que tio Damasceno, que é um homem rodado e viajado.
Esse Freud que tem nome de marca de veículo não chega nem ao chulé de Damasceno em sabedoria e sigo acreditando piamente que essa maldita cobra vai destruir meu casamento com o Roque, minha união.
Por isso mesmo rezo todas as noites para São João Baptista para que afaste de nós essa cobra e eu tire de minha cabeça que estou prestes a ser traída, ainda que não veja sinal disso por parte de Roque, cujo nosso amor continua muito sólido. Vivo, no entanto, com a pulga atrás da orelha esperando essa traição a qualquer momento, o que está me deixando paranóica. Não sei se o termo certo na psicologia é esse, e que aqui se chama de doideira.
Fiquei também bastante preocupada quando você disse que esse senhor Freud atesta que o “sonho é a realização de um desejo”. Imagina! esse homem deve ser um louco, pois, nunca tive desejos ruins contra Roque, pessoa que amo tanto, ainda mais ele sendo engolido por uma cobra e aqui em nossa comunidade não existem cobras como no Goiás que engolem bois e veados, no máximo e perigosa em veneno, a jararaca, que não embole nem um galo.
Esperamos você nas férias de São João quando conversaremos mais sobre este e outros assuntos. Até hoje, a escola onda aconteceu o crime dos meninos está fechada e o governo não toma uma providência.
Beijos de sua querida mamãe.
*** No próximo capítulo, Ohana decide se consultar com a rezadeira e videnten de Umbuzeiro