Ainda falta muito tempo para uma equidade nas relações de emprego e renda entre brancos e negros
Tasso Franco , Salvador |
30/04/2025 às 09:44
Negros seguem no trabalho mais pesado foto em Salvador, Barra, dia 28 abril 2025
Foto: BJÁ
Vamos, então, comentar a segunda parte da Quinta República período que compreende entre os anos 2001 e 2025 quando a população da cidade do Salvador atingiu 2.600.000 indivíduos (dados do IBGE) com a pobreza crescente e intermitente há 4 séculos entre os negros-mestiços, maioria da população.
Destaca-se, ao menos dois movimentos importantíssimos, ambos emulados da própria sociedade negro-mestiça como uma espécie de primeira luz no final do túnel, que foram a redução da natalidade através de um planejamento familiar empírico (mas que funcionou) e uma maior conscientização dessa população.
Esta população finalmente saiu da letargia e acordou num processo que foi gestado a partir dos anos 1980/1990, reivindicou seus direitos de forma mais aberta, lutou e conseguiu alguns êxitos nos seus propósitos. Mesmo que essas conquistas tenham sido limitadas são valorosas e que iniciam uma mudança de cenário.
Estamos falando da pobreza como foco e este segmento populacional que nunca ao longo dos períodos da Colônia, do Império e da República teve um amparo maior aos seus direitos conseguiu emplacar a lei das cotas (Lei 12.711, governo Dilma, 2012 - estabelece que 50% das vagas nas universidades e institutos federais reservados para estudantes que completam o ensino médio em escola públicas e prevês cotas para negros, mestiços, indígenas, quilombolas), mais espaços nos empregos, mais visibilidade na política elegendo representes que atuavam em defesa dessa causa, mais visibilidade mas novelas, no teatro, na dança e no cinema.
Ademais, saiu um poco mais do gueto, embora alguns segmentos dessa mesma comunidade ainda se vejam interligados a uma África ancestral que não existe mais do ponto de vista prático, exceto para a memória histórica. Alguns afro-baianos se acham mais africanos do que baianos, quanto deveria ser o contrário. Os afro-americanos, por posto, já se dissociaram desse estigma há mais de um século e se consideram americanos, construtores dos EUA como os demais migrantes quer sejam originários da escravidão ou não.
SALVADOR DA BAHIA
Esses movimentos que citamos acima – do planejamento familiar e da conscientização – não foram gestados por políticas públicas de governos e sim pela vivência prática, objetiva no sentido de ter uma melhor condição de vida para seus filhos e o senso comum de ter muitos filhos para no futuro já adultos ajudarem os pais não funcionara na maioria dos casos; e o segundo elemento – a conscientização – valeu a organização dos Movimentos Negros, o trabalho ideologizado de alguns intelectuais negros, entre eles, o principal Abdias Nascimento, o que ajudou na formação coletiva, prosperou e ganhou força reivindicatória.
Vou dar dois exemplos para clarear a compreensão do que escrevo, o primeiro, relacionado a uma pessoa que trabalhou em nossa casa como empregada doméstica MM, com carteira do trabalho assinada e ganho de 1 SM e outros benefícios, natural de Itinga, RMS, Lauro de Freitas, vizinha a Salvador, e que atuou conosco por mais de 20 anos.
Era filha de um pescador profissional e uma doméstica que tiveram mais 6 filhos, sendo 4 mulheres e três homens e todos já adultos viviam de ganhos na faixa intermediária – empregadas domésticas, manicures, carpinteiro, calceteiro, mecânicos de autos, etc – e que decidiram (ela e os irmãos) terem poucos filhos, 1 a 2 cada casal.
MM teve uma filha e, hoje, avó, a filha deu-lhe uma neta. E não quer mais outra, pois, sua filha já chegou a UNIME e ela quer a neta como doutora. MM é casada com um proprietário de oficina de pintura em autos e a filha dela casada com um mecânico de autos, sócio do pai noutra oficina em Lauro.
MM depois de 20 em nossa casa ganhou experiência e se tornou pequena-empreendedora em eventos – festa para aniversário de crianças, bufetes, etc, e usa bem o mecanismo da internet para divulgar seus serviços. E um dos seus irmãos é mestre de obras em calçamentos diversos.
Veja, portanto, as mudanças estruturais que estão fazendo em suas famílias levadas pela conscientização de que esse é o modelo correto – educação, conhecimento, tecnologias. para mudar de patamar de vida. E isso vem acontecendo em Salvador em larga escala, o que fez, inclusive que a população deixasse de crescer como vinha crescendo e hoje se situa em quinto lugar na Federação abaixo de SP, RJ, Brasília e Fortaleza.
Outro ponto emblemático que vou exemplificar foi a “Revolta do Buzu” um movimento estudantil que ocorreu na cidade, em 2003, contra o aumento da tarifa de ônibus. A mobilização, liderada por estudantes secundaristas resultou em protestos, bloqueios de trânsito e confrontos com a polícia. O aumento da tarifa, de R$ 1,30 para R$ 1,50, foi o ponto de partida, mas também houve protestos contra a qualidade do transporte público e a dificuldade de acesso à meia-passagem.
Esse movimento se tornou emblemático porque não foi organizado por nenhum politico e partiu de estudantes secundaristas, que raramente faziam protestos (os universitários, sim, dominavam os projetos políticos) e não tinha raiz politica clássica. Trata-se da luta por um direito da pobreza que não podia pagar o bilhete a R$1,50.
E chegou-se a discutir no âmbito da administração pública se os estudantes deveriam ser reprimidos ou não. E o prefeito Imbassahy teve o bom senso de não reprimir.
Essa não foi a única manifestação da pobreza na cidade. Vários outros protestos se seguiram, em 2009, cerca de 50 a 70 pessoas (de acordo com reportagem de A Tarde) realizaram um protesto dentro do Salvador Shopping. Os manifestantes acusam os empresários de serem racistas ao não contratarem funcionários negros para as lojas. Com apitos e megafone, os integrantes chegaram ao local por volta das 11h. Eles param em frente às lojas e pedem que os negros tenham oportunidades de trabalho.
"Os negros no Salvador Shopping só atuam na cozinha e no setor de serviços gerais", diz o coordenador do Movimento Atitude Quilombola, Valter Altino. O protesto é organizado por entidades como a Central Única dos Trabalhadores (CUT) e o Movimento Negro Unificado (MNU). Os seguranças do shopping observaram o ato de modo pacífico. A direção do Salvador Shopping não quis comentar o assunto.
E vários outros movimentos aconteceram nos shoppings e nas ruas, nada com a dimensão do que aconteceu nos Estados Unidos no início do século XX, porém, importantes para a afirmação da negritude e os ganhos foram chegando aos poucos, mas chegaram. Havia, evidente, pioneiros nessa história como José Santana, proprietário da rede de farmácia Santana que só contratava mulheres negras (jovens e maduras) para suas lojas.
Vale lembrar, só como ilustração, que nos EUA o movimento organizado por Marcus Garvey e outros ativistas negros para que aumentassem as oportunidades de empregos para os negros e enfraquecessem a Jim Crow (leis racistas e no transporte público discriminatório) já ocorriam desde a década de 1930. Diante de uma Marcha Negra para Washington, Roosevelt, assinou o decreto 8802, abril de 1941, criando o Comitê para Práticas Justas de Emprego e acabou com a discriminação na indústria da defesa.
Em Salvador, não houve nenhum movimento parecido, assemelhado com a Marcha Negra, e somente um século depois, os negros foram para as portas dos shoppings.
E, na atualidade, a situação é bem diferenciada, os negros-mestiços já ocupam funções em todos os campos, porém, na sua maioria nas posições intermediárias. E esta continua sendo a grande questão. Recentemente, o presidente Lula disse que essa população pobre não pode viver eternamente só amparada em bolsas.
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Nesse período que estamos relatando, entre 2001 e 2015, Salvador foi administrada pelos prefeitos Antônio Imbassahy (segunda gestão até 2004; João Henrique Barradas Carneiro (2055-2012); ACM Neto (2013-2020), Bruno Soares Reis (2021-2025 – mandato vai até 2028) e governadores César Borges (até 2002), Paulo Souto (2003-2006), Jaques Wagner (2007-2014), Rui Costa (2015-2021), Jerônimo Rodrigues (2022-2025 – tem mandato até 2026).
Nenhum desses gestores tanto no município quanto no estado promoveu programas específicos e estruturantes voltados para a comunidade negra-mestiça. Todos arranharam as questões essenciais com programas de médio porte, quando muito, sem ir no âmago da questão na relação emprego-renda.
Como explicar, por exemplo, que nos Estados Unidos país muitos mais racista do que o Brasil, terra da Ku Kux Klan, de conflitos sangrentos, de extermínios de negros, de assassinato, de revoltas, etc, tenha criado várias universidades voltadas para negros já no final do século XIX e Salvador, terra que se diz segunda África, zero Universidade nessa direção; zero instituto técnico e assim por diante.
O ganho efetivo, prático, real, só venho acontecer no século XXI, a política de cotas.
Os governos do PT chegaram na Bahia em 2007 com o discurso de que faria uma mudança e estruturalmente, na elevação da qualidade de vida da pobreza, mas pouca coisa aconteceu, salvos os ganhos com a mobilidade urbana (metrô e viadutos, novas avenidas) num modelo bem conhecido e que não difere do que existia: mais escolas, mais saúde, mais infra, mais votos. Repete-se a história com um caldo de cultura novo no sentido do marketing embromatório, de um desenvolvimento da Bahia que acontece só na propaganda.
Ora, a população de Salvador dos negros e mestiços continua pobre da (quase) mesma maneira que era salvo o reforço que recebeu com bolsas. Mas esse guarda-chuva é antigo e amplo envolvendo também a Prefeitura e o Governo Federal.
É provável que, no futuro (não se sabe exatamente quando) haverá uma ascensão maior dos negros e mestiços nos postos mais graduados dos empregos e do empreendedorismo na iniciativa privada e no serviço público, uma vez que a base da conscientização está plantada e em crescimento e há alguns programas voltados para a melhoria da qualidade do ensino como as escolas públicas em tempo integral e os institutos tecnológicos e um maior contingente nas universidades. (TF)