Cultura

ROSA DE LIMA COMENTA ROMANCE TUDO É RIO, DA MINEIRA CARLA MADEIRA

bem brasileiro, brasileiríssimo, atormentador, visceral, profundo na abordagem do brasileiro comum, nossa raiz, e com uma linguagem coloquial, porém, com uso de termos novos, elegantes e descritivos do povo
Rosa de Lima , Salvador | 20/12/2025 às 09:32
Tudo é Rio, de Carla Madeira
Foto: BJÁ
   
 Creio que estou deveras atrasada em comentar uma obra da mineira Carla Madeira, jornalista e publicitária, autora de três livros de grande sucesso Tudo é Rio (2014), A Natureza da Mordida (2018) e Véspera (2021).  Madeira tem sido apontada pelos críticos literários e sobretudo pelos leitores, esses os mais importantes e valiosos, pois, são quem compram, leem e difundem seus trabalhos no boca-a-boca e já somam mais de 1.2 milhão de exemplares vendidos, uma promissora nas letras.

   E nada melhor do que começar como diz o “tabaréu” pelo começo e foi o que fiz lendo sua obra de estreia, e que estreia, com o pé de direito, com o romance “Tudo é Rio” (Editora Record, 29ª edição, 2025, RJ,  capa Leonardo Jaccarino, imagem Holger Leue/Getty Images, 205 páginas, R$45,00 Amazon) bem brasileiro, brasileiríssimo, atormentador, visceral, profundo na abordagem do brasileiro comum, nossa raiz, e com uma linguagem coloquial, porém, com uso de termos novos, elegantes e descritivos e tiradas (do povo) brilhantes. Realmente, um belíssimo livro, que encanta o leitor, assim imagino, porque assim aconteceu comigo.

   E se não sou uma intelectual que tem explicações para tudo as mais eruditas possíveis, o que encontrei no livro com essa capa surreal, água, fogo, céu, preto e branco que, em princípio parece nada a ter com o livro, embarquei nessas ondas expostas pelo Jaccarino para só sair delas (e nem sai) depois que completei a leitura do livro. Fiquei admirada e se falo isso tardiamente (a primeira edição saiu em 2014) é porque eu sendo baiana-portuguesa não tenho pressa de chegar.

  E cheguei com esses elogios ao estilo de Carla Madeira porque li algo que me pareceu bem próprio dela, Minas Gerais sempre ajuda por que o estado com a cara mais perfeita do Brasil para o ser comum, um livro bem mineiro com sotaque Brasil. 

  – Puta. Não tem outro nome para Lucy. De profissão ela era puta mesmo. Trabalhava num puteiro, vivia num puteiro. Mas não era puta só por isso. Se só isso fosse, podia outros nomes mais respeitosos, como meretriz ou prostituta. Era puta e pronto, que essa palavra, a seco., carrega um xingamento, que quem conhecia Lucy queria logo desabafar.

   Esse é o trecho inicial do livro que vai narrar a vida de Lucy, uma jovem como muitas que tem no Brasil, que deixa a família por necessidade mais do que por prazer para se prostituir. Ou seja, ser puta e trabalhar num puteiro. Um enredo aparentemente simples, a vida do homem comum, da mulher trabalhadora de serviços auxiliares, com um diferencial dando conta de que Lucy era muito poderosa em seus atributos pessoais na cama, insubmissa, dominadora, bem com, ardilosa nas finanças, até que se inquieta com um ser supérfluo, pelo menos à primeira vista, a um moço chamado Venâncio.

   É a primeira desdita de Lucy. Diante da sedução da puta mandona e estrela do cabaré da Manu a autora narra que “Venâncio ficou quieto, apreciou, enquanto Lucy descrevia sem modéstia a sua competência. Quando mais ela falava, mais ele ouvia o que não queria. Quando abriu a boca, foi um ponto final sem recurso. Não quero não, moça, guarde essa gostosura toda para sua fila de babões, eu gosto de puta que dá mal”.

   Venâncio, de sua parte, era casado com Dalva. - Casaram apaixonados e se amavam perdidamente, “um saboreava o outro”, mas quando Dalva engravidou veio a cisma veio uma loucura na cabeça de Venâncio que, quando o menino nasceu, “ele entrou no quarto, Dalva oferecia o bico do peito ao menino () ele sentiu a dor da infidelidade, traição, a nuca esquentou num quase desmaio () ele arrancou o menino dos braços dela e jogou no chão. Bateu em Dalva, bateu, bateu. Espancou.

  Dalva se fechou em copas. Não quis mais saber de Venâncio. Enquanto isso, sem conhecer o drama de Dalva, Lucy, por uma questão de honra, por ser a puta mais glamurosa do local e fora esnobado por um ser tão insignificante como Venâncio, tinha que devorá-lo na cama. Se ela, em tempo recente havia conquistado o tio Brando esposa da tia Duca, que a criou, motivo de sua saída da casa de uma família para ir fazer vida no puteiro Casa de Manu, “sua fama já estava instalada”.

  Lucy finalmente conquista Venâncio e deitar com ele “acordou lugares desconhecidos. Estremeceu o invisível, arrepiou a alma com a pele dele, a saliva, o sêmen, tudo parecia o primeiro gole. Era a poesia no corpo. O jeito de mandar nela sem força, fazer ela querer o que ele queria, trouxe a novidade da submissão. () Os encontros alimentavam a ilusão. Ela soltava o cabelo e Venâncio revisitava o passado, fechava os olhos e, sem olhar Lucy, trepava com Dalva. Os dois foram agravando o adoecimento”.

   Eis, portanto, como Carla Madeira conquistou tantos leitores narrando um caso bem brasileiro exaltando o amor, a dor e a redenção através de um triângulo amoroso complexo em Belo Horizonte, envolvendo esses três personagens com uma escrita poética e intensa que compara a vida e as emoções ao fluxo incontrolável de um rio. Não um triângulo amoroso como se poderia pensar os três juntos em trocas de sexo por prazer numa cama ou vivendo uma vida em comum, mas algo mais profundo, da loucura mental.

   No final da narrativa, a autora mostra o drama de Lucy grávida de Venâncio, a doçura e altivez de Dalva no acompanhar desse processo, o isolamento de Venâncio, o retorno do filho de Dalva-Venâncio aquele que na inicial ele jogou no chão e pensou que estava morto, já adulto e um reencontro com caminho alagado.

    Tudo, portanto, é rio, as águas não param de correr e a escritora mostra que a aparente submissão de Dalva, moradora vizinha do puteiro, e as aventuras do seu marido (ex-marido) violento (e meigo) se entrelaçaram com uma puta sedutora, também doce e ingênua no amor, e o que acontece, nesses casos, só a providência divina é capaz de entender.

   Os eruditos dizem que o livro tem a tessitura de uma critica social, a condição feminina e a natureza machista dos homens. E alguns mais intelectualizados apontaram exageros e superficialidades em certas passagens. 

   Eu não vi assim. Achei que a autora expôs um romance brasileiro da turma do baixo clero onde o palavreado é esse mesmo que Carla Madeira se utilizou na narrativa, sem subterfúgios, sem máscaras para encobrir o que, de fato é real. 

   Ou como diz ao narrar o encontro de Lucy com o tio Brando: “Tirava a calcinha sob o vestido, esfregava na cara de Brando, fazendo seu cheiro se apoderar de tudo e seguia limpando a mesa”.