Cultura

SERRINHA NO TEMPO DOS MEUS AVÓS (1880-1960): O NATAL E A VIRADA DO ANO

A Missa do Galo era o principal evento do Natal da cidade desde o século XIX
Tasso Franco ,  Salvador | 18/12/2025 às 09:25
O Jornal de Serrinha 1919 com o registro do Anno Bom e as pastorinhas de 1920
Foto: BJÁ
  
   14. NATAL E ANO NOVO


  Outro dia lendo uma crônica de Fiodor Dostoiévski sobre  a arte de flanar em São Petesburgo, Rússia, ele falava e ria do trocista, do camarada que sorria de tudo, da vida, dos amigos, dos inimigos, da cidade, das autoridades e fiquei imaginando o que poderia escrever sobre o Natal e o Ano Novo (Réveillon) do tempo dos meus avós, em Serrinha, se não existiam nem Natal; nem Réveillon ou virada do ano, pelo menos como hoje acontece com exaltações ao Papai Noel, troca de presentes, comilança gastronômicas, queima de fogos, festas de toda natureza. O que existia era algo vazio, uma troça. Ou não havia.
  
 Diria que o Natal no tempo dos meus avós, nas duas últimas décadas do século XIX quando vieram ao mundo e se tornaram jovens, e nos primeiros 30 anos do século XX, quando estavam adultos, casados e com filhos, se resumia a missa na matriz de Senhora Sant’Anna.

   Esse costume da “Missa do Galo” introduzido pela igreja católica desde os primórdios do colonialismo, a saudação religiosa comemorativa da data de nascimento de Jesus, embora Jesus não tenha nascido da noite de 24 para 25 de dezembro, até porque nem existia ainda o calendário gregoriano, mas assim Roma estabeleceu e os católicos faziam (e ainda fazem) essa reverência.

   Assim como, em Serrinha, nas primeiras décadas do século XX algumas famílias já armavam presépios em suas residências com a manjedoura configurando o nascimento de Jesus, peças de barro ou louça de JC, Maria, José, burro e vários outros bichos, casinhas (lapinha), estrelas, etc, a havia desfile de pastorinhas cantando nas ruas no 6 de janeiro, em especial, o dia de Reis.

  Na Espanha, ainda nos dias atuais, se reverencia mais os 3 reis magos – Melquior, Gaspar e Baltasar – do que a figura do Papai Noel e nos shoppings são eles os adorados. Nos Estados Unidos o Natal se chama Christmas. Na Rússia, o Natal é comemorado em 7 de janeiro e o ano novo se chama Ded Moroz (Vovô Gelo). Na Espanha, o ano novo é Nochevieja.

  O Natal tem uma longuíssima história e etimologicamente falando a expressão significa nascimento. Estima-se que as comemorações ao nascimento do Sol Invictus já existiam há 7.000 a.C. nas referências ao solstício de inverno, no hemisfério Norte, quando havia uma mudança de tempo e o sol se tornava mais intenso, novo ano, melhores dias para a agricultura. Na Pérsia saudava-se a deusa Mitra (da sabedoria) com troca de presentes e comilança. 

   Com a expansão do Império Romano a Ocidente e Oriente, o imperador Aureliano oficializou as comemorações ao Sol Invictus e incrementou “As Saturnálias, as festas para Saturno, considerado o deus da Agricultura. O mundo se movia a base da agricultura e do culto a vários deuses (politeísmo) sendo o mais importante deles Jupiter. 

   Foi exatamente o imperador Lúcio Domício Aureliano (214-275 d.C) que estabeleceu o 25 de dezembro como a data para essas comemorações, mas, não havia referência a Jesus e sim ao Sol Invictus, até que, mais adiante, os imperadores Flávio Valerio Constantino (272-337) permitiu a prática do cristianismo no império; e Flávio Teodósio (346-395) tornou o cristianismo a religião oficial.

   A essa altura já existiam os templos católicos, o papado, os bispos, o culto a Maria (mais do que a Jesus), porém, foi Teodósio, 346 anos após a morte de Jesus, que deu status definitivo ao cristianismo (culto a Cristo) acabando com o politeísmo e sepultando os deuses Jupiter, Saturno, Netuno, Euros, Minerva, etc, etc, que ainda se mantiveram vivos na literatura, especialmente na poesia, porém deixaram de ser cultuados. 

   Tornou-se lei no Império Romano o culto a um único Deus (impessoal) e ao seu filho (Jseus) que era a “Luz da Vida” e substituiu-se o Sol Invictus. Havia uma identificação de um com o outro, mas, para pegar, se difundir, demorou algum tempo, até porque, mais a Oriente, na China, na Índia, o culto a Jesus e ao cristianismo não existiam.

   Não há consenso sobre o ano de nascimento de Jesus (teria acontecido no governo Herodes, o grande) e muito menos o dia.

   No século IV (da nova era: isto é, depois da morte de Jesus) a igreja promoveu grandes reuniões de bispos em Roma (concílios) e o papa Júlio I, no ano 350, oficializou a troca do Deus Sol (Invictus) por Jesus ou pela data de nascimento de Jesus (25 de dezembro). Houve o que se chama de ressignificação, ou seja, atribuiu-se um novo significado a uma situação que já existia.
                                                                        ***
     Então é natal! Como diz a música para definir o Natal cristão...não há uma data estabelecida. Foi um processo de mudanças que vai acontecer nos templos da igreja católica com o passar dos anos até que o papa Sisto IV (1414-1484) criou a Missa do Galo celebrando o nascimento de Jesus a meia noite com base numa lenda de que um galo teria cantado, anunciando, assim, um novo tempo. 

   Ora, pois, missa a meia noite (galo não canta a essa hora) era preciso terminar o culto e esperar o dia seguinte nascer para ouvir algum galo cantar. E assim foi feito em muitos templos católicos sendo que a missa terminava 1 da manhã e pra ficar até 5/6 da manhã aguardando o dia (olha o Sol Invictus) a população levava comidas, bebidas e foguetes. 

Isso é típico da igreja até os dias atuais: onde tem missa para Natal, padroeira, etc, tem festa, comilança e bebidas e Salvador, capital da Bahia, tem até ciclo de festas populares em tornos dessas datas que começa dia 4 de dezembro, com Santa Bárbara, e só termina o Carnaval.
                                                                  
    Em Serrinha, as indicações são de que a primeira Missa do Galo de destaque se deu em 1918 e o Jornal de Serrinha número 64, de 27 de dezembro, assim registrou: - Com o dia 25 passou a grande festa com que a Igreja celebra o nascimento do filho de Deus () A tradicional missa do galo foi celebrada ao ar livre, à meia noite com regular assistência, sendo que as ruas da cidade eram transitadas durante toda noite por muita gente. () A um lado da praça abrangendo uma grande área, o povo se acotovelava, entregue ao vae e vem dos passeios costumeiros, tendo a filarmônica 30 de Junho feito uma serata para deleite da população”.

   Essa missa foi rezada pelo padre Carlos Olympio Ribeiro e supõe-se, como a praça Manoel Victorino foi inaugurada em 1917 pelo intendente Luiz Ozório Nogueira ter sido a primeira ao ar livre na praça. Mas, com o JS fala na “tradicional missa” é provável que tenha ocorrido outras, até mesmo no século XIX, em frente a igreja e provavelmente de dia, uma vez que Serrinha que vai ter iluminação na praça, a acetileno nos postes, a partir da inauguração de 1917.

   O JS também fala que havia muita gente nas ruas e “a ordem não foi inalterada, de modo que não se registrou no cadastro policial um só caso de desordem () ...confirmação de sua tradição de povo ordeiro e pacífico”. Ou seja, povo na rua andando pra lá e pra cá significa que havia venda de comidinhas (galinha assada em especial) e bebidas, provavelmente até o dia amanhecer, como diz a lenda, esperando o galo cantar.

   A partir da década de 1930, com a instalação da luz elétrica a motores diesel, a Prefeitura instalava gambiarras na praça Luis Nogueira e havia muitas bancas de jogos de dados e outras de comidas, vendas de artesanado e cestinhas com castanhas de caju.

                                                                    ***
   Vocês observam que salvo o nascimento de Jesus, que foi real, tudo o mais que existe sobre o Natal é lenda, ficção, invenção da igreja, como queira. Era preciso dourar a pílula do nascimento de Jesus e criaram esses ensaios ficcionais : missa do galo, 3 reis magos, lapinhas, manjedoura, estrela de Belém e muita coisa mais.

   Quando eu era jovem lá nos anos 1958 ajudava meu pai a montar o presépio natalino lá em casa e uma das coisas que gostava de fazer era uma praia com búzios, pedras e sambambaias. A questão é que Jesus nasceu em Belém uma cidade montanhosa perto de Jerusalém e que não possui praia. E mais complicado eu nunca tinha pisado numa praia. Mas, nosso presépio tinha uma prainha, a lapinha (casinhas como montanha), bolas, enfeites, o burro, galinhas, galos, perus, guirlandas, etc. Porém, o mais famoso da cidade era o de dona Pipe na mesma praça que eu morava.

   Os presépios de Natal teriam nascido a partir da comunhão quando os fiéis iam até o altar para beijar a imagem do menino Jesus. As famílias montavam seus “altares” (presépios) já a partir do primeiro domingo do Advento (4 semanas antes do Natal), porém, a imagem do menino Jesus só poderia ser colocada na noite do Natal, de 24 para 25 de dezembro. Mas é claro que as adaptações regionais (e culturais) de cada região isso foi se alterando e o menino Jesus é colocado no momento em que se monta o presépio. 

    Ou seja, o menino Jesus (a representação do nascimento) nasce de acordo com cada data da montagem dos presépios, que podem acontecer no final de novembro e via regra geral na primeira semana de dezembro.

   Dai também surgiram e foram incorporados aos festejos natalinos as pastorinhas, de pastoril, rural, com desfiles de jovens mulheres em dois cordões vestidas com roupas em azul e vermelho (no Nordeste também chamados de encarnados) com guias, a figura da Diana (deusa) que dança entre os cordões, a cigana, a borboleta e as pastores no modelo de Portugal. 

   Em Serrinha, ainda assisti a ternos de pastorinhas orientadas por Ivone Maciel, esposa do prefeito Carlos Mota (década de 1960) desfile na praça nesse modelo, misto de Portugal e do Brasil. Os pandeiros que eram tocadas pelas meninas tinham fitas com as cores de Portugal, sobretudo o verde. E, creio, que as mulheres rurais de Serrinha usam sempre um lenço (ou pano) na cabeça para se protegerem contra o sol, herança das pastoras de Portugal que usam lenços.
                                                               ****
    PAPAI NOEL: Surgiu mais uma figura de ficção que foi o Papai Noel que é uma evolução da imagem de São Nicolau, bispo generoso do século IV na Turquia, que se tornou um santo. A imagem que conhecemos hoje foi desenhada PELO cartunista alemão Thomas Nast (1840-1902) que desenhou o velhinho rechonchudo de vermelho nos EUA), mas, que só se tornou popular quando a Coca-Cola o colocou em seus anúncios a partir de 1931, e ajudou a popularizar globalmente essa imagem do "Bom Velhinho". 

   A tradição de São Nicolau primeiro passou pela Holanda (Sinterklaas_ - um homem com vestes de bispo que trazia presentes) e foi levada para aos EUA pelos Imigrantes holandeses quando o cartunista Nast criou as ilustrações do Papai Noel para os anúncios da Coca-Cola, solidificando a imagem do velhinho com gorro, casaco vermelho, barba e saco de presentes, popularizando-o ainda mais globalmente. 

Em resumo, São Nicolau deu a origem, mas são autores como Nast e as campanhas da Coca-Cola que "criaram" o Papai Noel visual e comercial que celebramos hoje. 

   Em Serrinha, meus avós não celebraram o Papai Noel e creio que nem conheceram essa representação ficcional de São Nicolau. A Coca Cola só começou a ser vendida em Serrinha a partir dos anos 1960 porque a cidade não tinha energia e beber esse refrigerante quente é dose para leão. 

   Depois, o comercio de Serrinha entre 1880/1960 era pequeno e a organização social desse segmento não trabalhava o marketing do Natal. Papai Noel, portanto, no tempo dos meus avós era um ilustre desconhecido.
                                                               ***
 Outra lenda criada pela igreja é a dos Três Reis Magos e conta que Melchior, Gaspar e Baltazar, sábios do Oriente que estudavam as estrelas, seguiram a Estrela de Belém para adorar o recém-nascido Jesus, oferecendo ouro, incenso e mirra, simbolizando realeza, divindade e humanidade, respectivamente. Sábios, não Reis: A Bíblia os descreve como "magos" (sábios, astrólogos), mas a tradição os tornou reis, representando diferentes continentes (Europa, Ásia, África).

   Ou seja, no simbolismo, Jesus era de todos os povos com Melchior (Europa/Pérsia), Gaspar (Ásia/Indiano) e Baltazar (África/Árabe) são os nomes dados pela tradição. A Estrela: Eles interpretaram uma estrela brilhante como o sinal do nascimento do Messias e a seguiram até Belém. Os Presentes e seus Significados: Ouro: Para Jesus como Rei; Incenso: Para Jesus como Deus (divindade); Mirra: Para Jesus como homem (mortalidade/sofrimento).

   Essas figuras no tempo dos meus avós eram ainda mais desconhecidas do que Noell.

  O que aconteceu em Serrinha no tempo dos meus avós com essas inovações?

 Só predominaram a crença do galo e sua missa, as pastorinhas e os presépios. O Papai Noel seguiu desconhecido, assim como os 3 Reis Magos.
                                                                ***
   Falemos agora do Ano Novo:

   Meu avô Jovino apareceu no chalé onde moravam meus pais na virada do ano de 1940/1941, acompanhado de sua Roza, para acariciarem o primeiro netinho, Bráulio, que nascera em 20 de outubro de 1940, e encontrou meu pai vestindo um smoking e se observando num espelho se estava elegante.

   Jovino arregalou os olhos e obtemperou: - Aonde vais Bráulio tão elegante?

   - Ao baile da virada do ano no Hotel da Leste.

   - Não me digas que fortuna. Quem irá tocar nesse sarau?

   - A orquestra de Glenn Miller e Zilda (minha mãe) está ajeitando o cabelo com Camia e testando seu Chanel com gola borboleta.

   Minha avó Roza que acompanhava o diálogo sorria. 
                                                                 **
   Bem, como estamos falando em tempo de Natal e de ficção eu também criei a minha uma vez que meu pai nunca teve smoking, o Hotel da Leste só vai existir a partir de meados da década de 1940 após instalação da moderna da Estação Rio Branco, do trem, Glenn Miller nunca tocou em Serrinha e minha mãe nunca teve um Chanel.

    Na verdade, a virada do ano, em Serrinha, no tempo dos meus avós acontecia sem festas, sem foguetes, e ainda se chamava ano novo de Anno Bom (ainda se escrevia ano com dois n)

    O Jornal de Serrinha registrou, em 3 de janeiro de 1919, o que acontecia no planeta: - De festa foi o 1º pelo calendário conhecido como de Anno Bom ou dia da Circuncisão do Senhor () entre risos e alegrias passou o primeiro dia do ano consagrado feriado e santificado em todo globo terráqueo () ... assim sendo nós desejamos aos dignos assignantes deste jornal e aos nossos amáveis leitores tudo quanto se pode qualificar de bom, para a felicidade perenal daqueles que lhe são caros, com a afirmação indiscutível de que, o ano que se foi levou consigo mais um ano de vida que subtraiu da nossa existência”.

   E mais nada falou sobre algum evento em Serrinha salvo que recebeu vários cartões desejando feliz ano bom. Era assim mesmo, comemorações não existiam e a disputa maior da população era conseguir uma folhinha de alguma casa comercial para colocar na parede de sua casa, de preferência que tivesse uma imagem de santo (santa) ou de uma paisagem europeia com neve.

   Meu pai se dava bem com essa “ferramenta da internet da época” porque tinha uma Tipografia e Livraria que, além de vender folhinhas, fabricava-as. Isto é, a folhinha vinha pronta de Salvador com um espaço no cabeçalho em aberto onde se imprimia o nome da casa comercial ou de quem assim quisesse. Os políticos já faziam folhinhas nessa época.

   Recordo-me que uma das folhinhas mais desejadas era da loja Bacelar & Bacelar.

   Quanta história bacana desse tempo que não volta mais.

   Então, Feliz Natal e Próspero Ano Novo, eram os dizeres das folhinhas, os preferidos, ainda hoje, insubstituíveis.