Cultura

ABI: O PÓS ABOLIÇÃO NA FALA DE SYLVIO HUMBERTO E O RACISMO ESTRUTURAL

Conferência na ABI expõe retrato da Bahia que o Brasil insiste em não ver (Com Ascom ABI)
Tasso Franco ,  Salvador | 14/05/2025 às 21:08
Conferência de Sylvio Humberto
Foto: Joseanne Guedes
Nesta terça-feira (14), a sede da Associação Bahiana de Imprensa realizou a terceira conferência do ciclo ABI 95+5, que celebra os 95 anos da entidade. O evento recebeu o economista, vereador e intelectual negro Silvio Humberto para um mergulho nas camadas profundas do Brasil pós-abolição — ou, como prefere nomear, do 14 de maio — para revelar as estratégias silenciosas que sustentaram o racismo estrutural no país.

Autor do recém-lançado livro Um Retrato Fiel da Bahia: sociedade, racismo e economia — fruto de sua tese de doutorado defendida em 2004 na Unicamp —, Silvio propôs uma análise que vai além do fim jurídico da escravidão. “A abolição não significou o fim das relações raciais; ela apenas mudou os códigos pelos quais elas se manifestavam. Se antes o racismo era estruturado pela escravidão, depois ele se disfarçou de mito da democracia racial”, afirmou.

Em uma sala repleta de jornalistas, Silvio Humberto expôs como o Brasil — e particularmente a Bahia — redesenhou seu modelo econômico sem jamais incluir de fato a população negra liberta. “O racismo, além de violento e desumano, é burro. Ele atrasa a economia, impede o desenvolvimento e marginaliza uma maioria sob a justificativa de uma suposta inaptidão para o trabalho livre”, destacou, evocando análises de Celso Furtado, por exemplo.

Pigmentocracia
Entre dados históricos, relatos pessoais e referências acadêmicas, Silvio trouxe à tona o conceito de pigmentocracia: um sistema de hierarquia social determinado pelo tom da pele. “Na Bahia, quanto mais claro você for, maiores são suas chances de ascensão. A cor da pele continua sendo critério de mobilidade social”, sentenciou, destacando como essa lógica persiste mesmo em setores modernos como o polo tecnológico que se instala no estado.

Ao relembrar que o 13 de maio de 1888 é, em verdade, um marco inconcluso, o economista propôs uma mudança de lente: “Nos ensinaram a celebrar o fim, mas o que precisamos é refletir sobre o que começou no dia seguinte — o 14 de maio, quando o Estado e as elites reorganizaram o trabalho e o poder mantendo os negros à margem”.

Citando exemplos do cotidiano, desde o transporte público até o mercado de trabalho e o ensino superior, o vereador traçou o que chamou de “círculo vicioso da pobreza racializada”, reforçado por uma elite que “prefere atrasar a Bahia a ver o povo negro progredir”.

Imprensa antirracista
Durante a conferência, Silvio também destacou a interface entre a imprensa e a luta antirracista. “A imprensa precisa não só dar visibilidade à causa, mas combater as fake news históricas que sustentam a negação do racismo. A imprensa tem esse papel de, não só comunicar, mas também formar as pessoas, contribuir na formação cidadã. O enfrentamento ao racismo precisa ser coletivo”, disse, ao elogiar o esforço da ABI em incorporar o debate racial à sua agenda permanente.

Ernesto Marques, presidente da ABI, reforçou que cobrir racismo não deve ser tratado como uma editoria ou recorte eventual: “Não basta criar uma comissão de jornalistas negros na ABI. A luta antirracista precisa estar no centro da política editorial das redações”, afirmou, apoiado pelos demais diretores presentes.

Da dor à potência
No decorrer de sua fala, Silvio confrontou ainda o mito de Salvador como Roma Negra, lembrando que a cidade nunca elegeu um prefeito negro. “Somos a maioria, mas não estamos nos lugares de poder. Isso não é acaso, é projeto”, afirmou, numa crítica direta ao modelo excludente que ainda rege as estruturas políticas e econômicas do estado.

Apesar do diagnóstico duro, Silvio Humberto encerrou sua fala com esperança. Para ele, a resistência cultural e a inventividade negra seguem vivas e são motor de transformação. “A Bahia é singular e plural. Nossa ancestralidade é força e não obstáculo. Mas é preciso virar a chave, integrar a maioria, democratizar o Estado e reconfigurar as prioridades de investimento”.

A conferência, que será transcrita quase integralmente na próxima edição da revista Memória da Imprensa, contou com um público formado por jornalistas como Jairo Costa Júnior, Donaldson Gomes, Edson Rodrigues, Pablo Reis, Osvaldo Lyra e Fernando Sodake, além da chefe de gabinete do vereador Silvio Humberto, Silmar Carmo, em um debate profundo, necessário e incômodo — como devem ser as conversas que querem mudar o mundo.

“Na Bahia, quanto mais claro você for, maiores são suas chances de ascensão. A cor da pele continua sendo critério de mobilidade social.” — Silvio Humberto