Diálogo de alto nível entre os dois principais personagens envolvendo a essência da vida na terra: a virtude, o amor, a inveja, a traição, a intriga, a fortuna, a beleza, a ambição e assim por diante
Rosa de Lima , Salvador |
10/05/2025 às 11:29
Obra prima da literatura mundial
Foto: BJÁ
A lista dos bons livros no planeta é extensa a Oriente e Ocidente. Nós, os brasileiros, estamos mais acostumados à leitura dos ocidentais. Já a lista dos livros excepcionais - daqueles que marcaram a literatura mundial para sempre - é mais seleta. Difícil é apontar qual deles, qual obra é a melhor de todas.
É complicado se fixar nalgum nome ou obra porque muitos são os gêneros da literatura – romance, ensaio, poesia, novela, crônica, prosa, etc – e sempre houve uma forte tendência dos analistas em citar uma obra por segmento como a mais destacada, o que nem sempre é aceito pela maioria.
Num campo tão amplo haverá sempre controvérsias. Diria que a obra que vamos comentar está entre as mais relevantes da literatura mundial no gênero tragédia. Trata-se do poema dramático ou peça teatral intitulada “Fausto”, do alemão Johann Wolfgang Von Goethe” (Editora Garnier, SP, 320 páginas, impressão 2024, China, tradução Eugênio Amado, R$60,00 capa dura) em síntese a narrativa de um homem (Fausto) que, na ânsia de alcançar poder, conhecimento, conquistas amorosas, riqueza e a plena felicidade vende sua alma ao diabo (Mefistófeles).
Mas, não se trata de uma submissão a qualquer preço se entregando de corpo e alma ao Demo, de cara, de pronto, nem o diabo também aceita que assim seja. Afinal para participar do seu reino, de suas glórias e alcançar o êxito desejado havia códigos a seguir, regras do mundo infernal, e o próprio Mefistófeles – representante da categoria – questiona os limites do seu poder.
Daí que se trava um diálogo de alto nível entre os dois principais personagens envolvendo a essência da vida na terra: a virtude, o amor, a inveja, a traição, a intriga, a fortuna, a beleza, a ambição e assim por diante. Ou seja, seria necessário superar ou entender esses atributos numa caminhada repleta de adversidades e também de luxuria e prazer para atingir o desejado.
Aos olhos do autor, creio, nada escapa e num livro com narrativa tão complexa e centenas de personagens – imperador, rainha, bruxa, estudante, espírito maligno, idealista, violinista, cético, super naturalista, ineptos, astrólogo, destro, gigantes, ninfas, etc, etc – o leitor terá imensas dificuldades de acompanhar o que se passa se não tiver conhecimento básico do mundo helenístico, da Odisseia e do politeísmo com seus inúmeros deuses, animais fabulosos com corpo de leão e asas de águia, as deusas do destino, as deusas das catástrofes, Tisífone, Megera, Asmodeu e outros tantos citados.
Não significa que Goethe abuse de sua erudição ou queira mostra-la em sabedoria literária. O enredo que traçou e seguiu obedece a um contexto da época (século XVIII e início do século XIX), um momento fértil da literatura europeia sobretudo a alemã, do iluminismo e do romantismo e sua vasta produção, além de “Fausto” (a obra prima) existem reflexões teóricas sobre arte, romances, outras peças teatrais e poemas.
“Fausto”, no entanto, é o creme de la creme, enredo para se compreender o universo humano, a condição do homem, e Goethe demorou 60 anos para concluir sua obra, editada na inicial em dois volumes, hoje, agregados num único volume a exemplo da publicação da Garnier, e, claro, com tantas décadas para chegar ao final da narrativa entre 1772 a 1832, a roda girou, a sociedade em sua volta também se modificou e as concepções sociais, políticas e históricas avançaram estão interrelacionadas.
Haja paciência para a leitura dessa obra e o ponto de partida do autor, salvo outras interpretações, é qual o sentido da vida, ou como é a vida, como o homem deve se comportar e caminhar nas mudanças de séculos (XVIII para o XIX) com tantos filósofos e pensadores e lançar suas teses no mundo europeu, que era o farol, o espelho da sociedade mundial mais avançada, numa trilha povoada de ambições, de demônios, de sexo, beldades, tentações, força, poder, e tudo que compõe esse universo.
E, mais ainda, e é nesse ponto que a obra de Goethe se torna mais valorosa, num ambiente ainda povoado pelo mundo da Odisseia, poema épico da Grécia antiga, atribuído a Homero.
Vamos a alguns trechos do livro: - Fausto: Ai de mil! Estudei Filosofia, Direito, Medicina e, ainda por cima e por desgraça, Teologia, tudo isso com a máxima aplicação e o mais profundo empenho, e agora eis-me aqui, pobre tolo, sabendo tanto quanto sabia inicialmente. () OH! Por quanto tempo hei de permanecer encerrado neste cárcere? Neste covil maldito e úmido, no interior do qual até mesmo a luz do céu se torna turva, ao passar por esses foscos vitrais? () É este o mundo em que vivo – se é que se pode chamar de mundo!
Essa é a primeira reflexão de Fausto até os dias atuais profética. Quando milhões de seres humanos, na atualidade, questionam a condição humana e o mundo em que vive? Eis, pois, uma das essências do livro de Goethe.
Seguimos com outros personagens: Wagner aparece (o diálogo é teatral): Perdão senhor, escutei-te a declarar – estarias acaso lendo alguma tragédia grega? Gostaria de ser iniciado nesta arte, que hoje em dia está em alta. Até já ouvi dizer que bem poderia um ator dar explicações a um pregador.
Fausto: É verdade, mormente se o pregador também for ator, o que não é raro acontecer nos dias que correm.
Wagner: Ah! Vivendo recluso em sua cela e vendo o mundo apenas nos dias de festa, e mesmo assim de longe, como se através de uma luneta, como então querer que se possa dominar ou ouvintes pelam persuasão?
Fausto: Se não sentires por dentro, não conseguirás externar. Se não brotar de tua alma, não conseguirás atingir os corações com um sentimento forte e espontâneo. Podes até preparar seu guisado com sobejos alheios, soprando as velas cinzas para reacender o fogo; com isso talvez até consigas agradar as crianças e os símios, mas jamais lograrás comover um outro coração, se o que disseres não sair de dentro do teu coração.
Adiante, no segundo ato, no escritório Fausto abre o volume do Novo Testamento e se põe a ler: - No princípio era o Verbo, a palavra. Já começo a encontrar dificuldades. De qual obter ajuda para prosseguir? () No princípio era a Ideia. Será que a ideia tudo cria, e que por meio dela tudo se realiza? () No princípio era a Energia. É o espírito que por fim está me ajudando. E agora posso escrever no princípio era a Ação”.
A seguir, Fausto vê um cão e diz: “Se queres compartilhar o quarto comigo, vão para de latir. Um de nós dois terá que sair daqui. () Abro a porta e te liberto () Por acaso, criatura escapaste do inferno? Não tentes fugir pelo teto. () Deita aqui aos pés do teu amo. () Obedeces ou usarei o Tríplice Fogo para te reduzir a cinzas”.
Sai de trás da estufa sob a figura de um escolar viajante o diabo (Mefistófeles) e indaga?
Por que essa gritaria toda e o que desejas que faças por ti?
Fausto: - Era isto que estava dentro daquele vão? Esse escolar ambulante? Da vontade de rie!
Mefistófeles: - Ao erudito mestre, minhas saudações. Fizeste-me suar um bocado!
Fausto – Como se chamas?
Mefistófeles: - Esta pergunta me parece boba para alguém que despreza o Verbo. Alguém que, desdenhando do que é aparente, busca a essência das coisas explorando-as até o fundo.
Fausto: No teu caso, meu caro, é possível chegar-se à essência pelo simples conhecimento do nome. Isso ocorreria, por exemplo, se eu soubesse com toda certeza que teu apelido seria “Deus das Moscas”, pois é como se traduz Belzebu ou “Corruptor” ou ainda “Pai da Mentira”. Então: quem és?
Mefistófeles: - Sou parte da força que só deseja o Mal, mas sempre causa o Bem.
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Eis, pois, a chave da porta principal nesta narrativa: As artes do demônio para seduzir o homem com ações que os mortais consideram até hoje, como sejam do mal, mas que o ser com pés de cavalo (os nórdicos situavam o diabo com patas de cavalos não de bodes) consideram do bem, as diversas tentações da vida que se acercam dos indivíduos. Ou como diz Mefistófeles numa das falas: “Sou uma parte das trevas que deram origem a luz”
“Fausto” – a obra no seu conjunto e não o personagem individualizado – contém um pensar tão profundo que se torna impossível elogiá-la com apenas uma adjetivação. É profunda sabedoria posta aos leitores, à humanidade, para permanentes reflexões entre o que popularmente se conhece como as “as forças do mal e do bem” que vivem entrelaçadas e em permanente conflito, em disputas individuais e coletivas.
Com diz Mefistófeles: “Por mais que me empenhe não consigo destruir o que se opõe ao nada. () E essa maldita invenção que é a vida, tanto a humana quanto a animal, tampouco há um modo de acabar com ela”.
Este é um livro que merece a atenção especial dos nossos leitores. Uma obra de fundamental importância para se conhecer o fluir da vida e as ambições humanas com a névoa do Demo.