Salvador

RECEITA DE IMORTALIDADE PARA UMA ACADEMIA DE LETRAS, POR MARCO GAVAZZA

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| 15/12/2010 às 10:00
Depois do prefeito poeta de Canarana, mais um Graciliano Ramos em academia
Foto: LER E ESCREVE

Leio num destes portais da internet, que como "o sol nas bancas de revista nos enche de alegria e preguiça" (Caetano estava certo: quem lê tanta notícia?) que Maurício de Souza acaba de ganhar uma cadeira na Academia Paulista de Letras.  Isso mesmo, Maurício de Souza, o criador de Mônica e sua turma. 


Quando criança eu adora as revistas em quadrinhos. Era o tempo do Recruta Zero, Luluzinha e Bolinha, Gato Félix, Mickey, Donald e também dos menos infantis, como Super Man, Mandrake, Tarzan, Zorro, Fantasma e outros.  Segui gostando de quadrinhos na juventude, já então com a provocante Valentina de Guido Crepax, a inquieta Mafalda de Quino, Charlie Brown e seus amigos, de Schulz ou o insuperável Asterix, o Gaulês, de Uderzo e Gosciny.  


Na infância, acredito que os quadrinhos, com a tradução visual do que estava escrito, me ajudaram a gostar de ler.  Quanto aos preferidos da juventude em diante, eles pegavam a gente pelo conteúdo. Valentina era uma verdadeira sessão de cinema feita em quadrinhos. Ângulos, enquadramentos, closes fantásticos, além da beleza futurista da heroína e sua movimentação erótica. Mafalda representava o universo das perguntas sem respostas e uma crítica feroz às classes dominantes, como políticos, empresários e banqueiros. Já Asterix nos dava uma visão panorâmica do Império Romano e da primordial resistência francesa às invasões, com a profundidade histórica possível aos quadrinhos. Tudo ilustrado de forma extremamente moderna e bela.


Quadrinhos, portanto, foram importantes na minha "formação cultural".  Mesmo assim, não foram eles os responsáveis pelas grandes emoções e ensinamentos que me proporcionaram a literatura, desde Subterrâneos da Liberdade, O Aleph (de Jorge Luiz Borges e não o "pirata" de Paulo Coelho) até o recente Queda de Gigantes, de Ken Follet.  


Com o tempo, os quadrinhos perderam espaço para os desenhos animados exibidos exaustivamente por todos os canais de televisão aberta durante as manhãs e alguns canais por assinatura, o dia inteiro. Neles a voz dos personagens complementa a visualização, eliminando assim o "incômodo" da leitura.


Assim, quando vejo a notícia de Maurício de Souza como acadêmico das letras de São Paulo, não chego a me surpreender. Collor, José Ribamar Sarney e outros também são imortais das letras. Tiririca foi eleito deputado federal com a maior votação da história -por coincidência- de São Paulo. Depois se averiguou ser Tiririca além de absolutamente sem graça também quase absolutamente analfabeto. Imediatamente levantaram-se vozes em todo o país defendendo a preservação de seu cargo eletivo, pouco importando a sua capacidade de escrever, ler e entender o que está escrito. Assim, nada mais me espanta neste país, que após consagrar Lula como o presidente mais bem avaliado da história de república, deu à ignorância o status de uma qualidade. Não vou questionar aqui o "conteúdo" da Turma da Mônica. Bolinha e Luluzinha também era besteira pura e sua principal função era ajudar a gostar de ler, repito.


Porém, não posso evitar imaginar com devem estar se sentindo Mário de Andrade ou Monteiro Lobato -para citar apenas dois da imensa galeria de escritores paulistas famosos- vendo seus trabalhos levados ao mesmo nível das gags de Cebolinha ou Cascão.


Pra começo de conversa, Maurício é um desenhista. Sua vida profissional começou em Mogi das Cruzes, em São Paulo, desenhando cartazes e ilustrações para as rádios e jornais locais. Quando resolveu morar na capital, o primeiro emprego que encontrou foi de repórter policial na Folha da Manhã e aceitou, é claro.  Suas reportagens copidescadas eram ilustradas por desenhos dele mesmo, que agradavam muito os leitores da Folha. Maurício seguia desenhando e após muita insistência conseguiu que o jornal publicasse tirinhas de humor com um seu personagem, o cachorrinho Bidu.  Logo se juntou a outros desenhistas e fundou a Associação de Desenhistas de São Paulo que pretendia "nacionalizar" as histórias em quadrinhos. 


Quando a Folha lançou o suplemento infantil Folhinha, com a ajuda da jornalista Lenita Miranda de Figueiredo -a Tia Lenita-  Maurício criou a Mônica, inspirado em sua própria filha e que logo tornou-se um sucesso. Roteiros de Tia Lenita (que jamais foi citada) e desenhos de Maurício.  Tempos depois a Mônica passou para o suplemento dominical do Estadão e em seguida para revistinhas. Maurício a esta altura já havia montado uma grande equipe de desenhistas e roteiristas.  Suas filhas Marina e Magali assumiram a direção de criação dos roteiros das revistinhas e Maurício depois de algum tempo limitou-se a desenhar somente as histórias de Horácio, o dinossauro.  Sem escrever absolutamente nada.


Na verdade, Maurício de  Souza deveria ganhar uma cadeira de imortal na Academia Brasileira de Marketing, se existisse uma.


Seus quadrinhos têm fama internacional, foram sido adaptados para o cinema, televisão e vídeo-games. Isto sem falar na infinidade de bugigangas comercializadas pelo mundo a fora -desde o velho elefante do extrato de tomate até chinelinhos da Mônica- com a marca das personagens, devidamente licenciadas pela Maurício de Souza Produções. Existe ainda o parque temático  da Mônica em São Paulo, assim como já existiram os de Curitiba e do Rio de Janeiro.  Após vinte anos de editora Globo todos os títulos da Turma da Mônica passaram a partir de janeiro de 2007 para a multinacional Panini, que já detinha na época os direitos das publicações dos super-heróis da Marvel e DC Comics.


Para quem vivia de desenhar cartazes no interior de São Paulo, este é um case espetacular de desempenho empresarial no universo da comunicação e merece todos os prêmios possíveis.  Menos a Academia Paulista -ou qualquer outra- de Letras. 


Mas isto já é outra história, tem a ver com Lula, Tiririca, o Brasil em 53º lugar na avaliação internacional de conhecimento (atrás da Tailândia, Rumênia, Uruguai e outros)  e acho melhor deixar pra lá. Uma coisa vocês entenderam: no Brasil, se pretendem a imortalidade literária ou um votação recorde para um cargo eletivo, fujam dos livros.