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Rosa de Lima

ROSA DE LIMA COMENTA "O EU SOBERANO" DE ELISABETH ROUDINESCO

Elisabeth Roudinesco leciona psicanálise na Universidade de Paris VII e é biografa de Sigmund Freud
01/12/2023 às 09:48
  

  Ainda bem que existem personalidades da literatura no mundo Ocidental que dignificam a história e se distanciam do politicamente correto e enjoativo dos tempos atuais, sobretudo na política e no academicismo ideológico da esquerda identitária no Brasil, e produz obras para conhecimento público capazes de oferecer aos leitores de uma maneira geral algo, em sintonia com a realidade, a independência e o livre e soberano pensar.

  A historiadora e psicanalista francesa Elisabeth Roudinesco, em "O Eu Soberano" (Zahar Editora, tradução de Eliana Aguiar, 1ª impressão, 2022, RJ, 299 páginas, R$62,00 nos portais da internet) analisa nesta obra as derivas identitárias, as trans identidades, as loucuras inquisitoriais, a derrocada da psiquiatria, as grandezas e decepções dos estudos do gênero. 

     Enfim, a complexa história dessas derivações identitárias repletas de prefixos e sufixos - hetero, trans, filo, fono, homo, etc  - que tentam entronizar as fobias coletivamente e estigmatizam inimigos reais e/ou potenciais, incluindo a recente cultura do cancelamento tão em moda.

     Roudinesco faz uma ampla análise desses subtemas e outros à luz de Lacan e Freud, das obras de Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Aimé Césaire, Frantz Fanon, Judit Butler, Michel Foucault e Jacques Derida com embasamento no que apregoa. 

    "Para a mutação do transexualismo em identidade transgênero - ou "trasidentidade" - se tornasse possível - era necessário ainda que ela estivesse ligada a outro evento: a despsiquiatrização da homossexualidade. Foi em 1973 que a American Psychiatric Association (APA) decidiu, depois de um turbulento debate, finalmente riscar a homossexualidade da lista de doenças mentais. Esse progresso na emancipação foi acompanhado, aliás, pelo abandono do termo "homossexualidade", inventado em 1869, junto com "heterossexualidade", em troca de uma denominação evasiva de qualquer patologia: os homossexuais homens e mulheres tornaram-se, então, gays e lésbicas, formando duas comunidades de combate", escreve a autora.

    Segundo Roudinesco essa é uma tese até hoje discutível, uma vez que a escolha "significava claramente que a homossexualidade não deveria ser pensada como "orientação sexual" - um homem ama um homem e uma mulher ama uma mulher, mas como identidade: assim, alguém poderia ser gay ou lésbica, diziam, sem nunca ter tido relação sexual com uma pessoa do mesmo sexo".

    Bem, com o passar dos anos, a essa comunidade de gays e lésbicas acrescentaram-se os bissexuais, os transgêneros e os hermafroditas, estes últimos rebatizados de intersexuados. Daí, surge a sigla LGBT logo remanejada para LGBTQIA+ e poderiam a justo título, reivindicar direito ao casamento, à procriação, à transmissão de seus bens.

    E como o que acontece nos EUA se irradia pelo mundo Ocidental, para normatizar essa situação, defini-la e criar raízes noutros países, criou-se o termo "heteronormativo", para designar toda a opressão ligada ao patriarcado. 
   Lembra Roudinesco em seu livro que se criou, também, o termo "cisgênero" - um antônimo de transgênero, "termo que define as pessoas que não se reconhecem no corpo que lhes foi designado no nascimento, o que se supõe, aliás, segundo elas, que a anatomia seria somente uma construção, e não uma realidade biológica, pois o sujeito teria o direito de reconhecer-se nela ou não". E, atualmente, se impõe como uma norma dos politicamente corretos pois o adjetivo "generificado" substitui, cada vez mais, o "sexuado".

     A psicanalista francesa biografa de Sigmund Freud destaca que está se instalando em áreas do Ocidente 'loucuras inquisitoriais": “Nessa perspectiva, uma parte do movimento feminista – confessa - vai acabar se mostrando hospital às liberdades fundamentais em matéria de costumes. É a esse feminismo que se associam em geral as adeptas da releitura moral o ou politicamente correta - das obras de arte, o que leva inelutavelmente a operações de censura contra qualquer expressão considerada 'sexualmente sugestiva' na arte ou na literatura"

    Roudinesco comenta que é preciso estar bem atenta a esses movimentos, com olhar de discernimento, pois, ninguém pode negar as exigências de um direito baseado em provas e no respeito à intimidade, "mas os usuários da internet não podem substituir os juízes para oferecer carrascos ou criminosos como pasto à opinião pública; como, da mesma forma, isso não deve jamais levar ao favorecimento de atos de censura e puritanismo". Lembra que, em 2017, organizadores de uma exposição dedicada a Balthus, no Metropolitan Museu de Nova York, foram obrigados, sob pressão desse tipo, a afixar sob certos quadros um aviso contra a perturbação causada pela representação de determinadas cenas e a famosa tela "Teresa sonhando (1938) chegou a ser ameaçada de ser retirada após um protesto, porque mostra uma adolescente encostada numa cadeira, as mãos sobre a cabeça, a saia levantada mostrando parte interna da coxa e a calcinha de algodão branco.

    O livro de Roudinesco além de tratar desse complexo tema (sexualidade) no capítulo que intitulou "A galáxia do gênero" vai ambientar seu pensamento e observações valiosas nos subtemas "Desconstruir a raça", "Pós-colonialidades", "O labirinto da interseccionalidade" e "Grandes substituições". Diria que é um livro para adultos com conhecimentos sedimentados da cultura básico do homem e requer uma atenção especial dos leitores.

   Sobre a “Desconstrução da Raça, a autora analisa conceitos emitidos por Levi-Straus, os estudos de Aimé Césaire e Lépold Sédar Senghor, os escritos de Octave Mannoni, Frantz Fanon e do argelino Katb-Yacine, os conceitos de raça, o racismo, a mestiçagem e o pós-colonialismo. Cesaire foi o pioneiro a denunciar a brutalidade como o colonialismo destruira (na África e nas Antilhas) as antigas civilizações em nome de “uma missão civilizatória”. No entanto, nuca reivindicou, como fazia a nova geração saída dos campis norte-americanos, “que a ideia de uma designação identitária racial ou étnica pudesse ser uma resposta à barbárie imperialista”.

   Creio que o melhor do livro está no capítulo “Grandes Substituições” quando a autora finaliza a obra tratando de um tema extremamente atual, não que os outros capítulos sejam omissos em relação a atualidade, pelo contrário, todos se fundem, mas neste final quando aborda com mais profundidade a cultura do outro, o respeito que isso impõe, sobretudo cada qual respeitando e admitindo a cultura que não é, necessariamente a sua, até na origem étnica e na educação formal, sem quer impor a sua verdade, ou supostamente o seu saber.

   “Nenhum exército pode resistir à força de uma ideia cuja hora chegou”, cita Victor Hugo, e critica os identitaristas extremistas que criticam Sartre sem conhecimento de causa.

   Por intermédio das redes sociais, os grupos da nebulosa nacional-identitária prosperam em cima da miséria dos povos e propagam suas ideias regressivas. Eles partilham com seus inimigos extremistas da outra margem um ódio absoluto pelo progressismo e pela esquerda, mas por razões diversas. São decididamente ligados à tradição dos anti-luzes, como bem descrita pelo historiador Zeev Sternhell.

  Bem, creio que ofereci aos nossos leitores uma visão geral do livro “O Eu Soberano” e recomendamos.