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Rosa de Lima

ROSA DE LIMA COMENTA “NA CASA DO MEU PAI”, DE KWAME ANTHONY APPIAH

Obra dessas que são lidas fazendo anotações e estudos complementares, e quando se chega ao fim se sente extremamente gratificado com os ensinamentos que o autor oferece aos leitores
03/11/2023 às 10:25
  Kwame Amthony Appiah é um intelectual ganês filho de pai africano e mãe de origem inglesa filósofo formado em Cambridge, em 1982, hoje, titular de estudos afro-americanos e de filosofia da Universidade de Harvard, EUA, autor de 22 livros e inúmeros artigos publicados em revistas especializadas em filosofia. Ainda exercendo a cátedra, 69 anos de idade, portanto, um nome dos mais respeitos na abordagem do tema africanismo.

Sua extensa obra vem sendo traduzida no Brasil - há um número considerável dos seus trabalhos editados em português - e estudada nas universidades que têm disciplinas voltadas para letras e estudos afro-brasileiros e já deu várias entrevistas à imprensa brasileira publicadas na Folha SP e em Veja.
Vamos comentar um dos seus livros mais destacados lançado em 1993, em inglês, intitulado "Na Casa do Meu Pai - a África na filosofia da cultura (Editora Contraponto, 310 páginas, RJ, tradução de Vera Ribeiro, 1997, 5ª impressão de 2016, R$74,98 Amazon) e que recebeu os prêmios Annifield –Wolf, Herskovits e James Russel. 

Trata-se de uma obra densa, de interpretações complexas e múltiplas, bem fundamentada com suas observações autobiográficas desde Gana e a cultura Achanti, passando por sua formação em Cambridge e nos EUA, onde mora, e uma extensa bibliografia (em inglês) com citações de centenas de autores.
Portanto, para ler Appiah, ao menos esta obra em que há muitos conceitos filosóficos, ele próprio emitindo alguns de sua pena, contestando ou discordando de outros e também aprovando alguns deles, exige-se, ao menos, um conhecimento básico da cultura afro-americana dos EUA e que tem, obviamente, reflexos no mundo letrado ocidental. 

Diria que, no geral, as 300 páginas em corpo 9/10 são de alta erudição com incursões pela antropologia, história, crítica literária, biologia, abordando temas como etnofilosofia, pre-colonialismo, pós-modernismo e identidades africanas.

Prepare-se, pois, para apreciar uma obra dessas que são lidas fazendo anotações e estudos complementares, e quando se chega ao fim se sente extremamente gratificado com os ensinamentos que o autor oferece aos leitores, desde conhecimentos da cultura Achanti - reino da Costa do Ouro de Gana, ainda hoje existente neste país africano, evidente, com outra configuração pós-colonial, mas, com grande poder e uma cultura ancestral raríssima, sobretudo nos funerais – ainda em prática – como no tempo dos bisavós de Appiah, nascido em 1954; passagens que ele descreve da atuação de seu pai, o advogado Joe Appiah e de Kwame Nkrumah (primeiro presidente de Gana pós colonialismo britânico) nas lutas pela independência do seu país, a posição de sua família em Koumassi (capital Achanti), alguns ritos e assim por diante.

Observa-se, no entanto, que a erudição posta ao longo do texto não representa algo excessivo ou com traços de pernosticidade, não. É pertinente aos temas abordados que são por sua natureza complexos e quando comenta no primeiro ensaio ou capítulo o que chama de “A invenção da África” e cita uma frase de Nkrumah como destaque inicial da abertura – “A África para os africanos, exclamei (...)/ Um estado livre e independente na África/ Queremos Poder governar-nos neste nosso país sem interferência externa (...)” vê-se que somente um autor com vasto conhecimento sobre esse assunto pode analisar esse tema com sabedoria.

E o que Appiah põe à disposição dos leitores são as diferentes visões de pensamentos de africanos – desde Grummell e Soinka; Onésima Silveira e Hountodji – sobre racismo, racialismo, bases do pensamento africano pós-colonialismo e o que ele chama de “doutrina da visão”: “Em sí, o racialismo não é uma doutrina que tenha que ser perigosa, mesmo que se considere que a essência racial implica predisposições morais e intelectuais. Desde que as qualidades morais positivas se distribuem por todas as raças, cada uma delas pode ser respeitada, pode ter seu lugar, separados, mas igual”.

O segundo capitulo intitulado “Ilusões de raça” abre com um pensamento de W.E.B. Du Bois: “Se isto é verdade, a história do mundo é a história, não de indivíduos, mas de grupos, não de nações, mas de raças”. Appiah considera que Du Bois foi quem lançou “as bases intelectuais e práticas do movimento pan-africano ()...e se alguma pessoa isolada é capaz de nos fornecer uma compreensão da arqueologia da ideia de raça no pan-africanismo, é ele”. 

  A propósito, Du Bois questiona, o que é a África para mim? – A África é evidente, a minha pátria. No entanto, nem meu pai nem o pai do meu pai jamais a viram, ou souberam do seu significado, ou se importaram excessivamente com ela ()... a marca de sua herança está em mim, na cor e nos cabelos. Essas são coisas óbvias, mas de pouco significado em si mesmas; só importam por representarem diferenças reais e mais sutis em relação a outros homens. Se elas representam ou não, não sei, nem tampouco sabe a ciência de hoje”. 

Adiante os capítulos intitulados “Pendendo para o Nativismo”, “O Mito de um mundo africano”, “A etnofilosofia e seus críticos”, “Velhos deuses, novos mundos”, “O pós-colonial e o pos-moderno”, “Estados Alterados; w “Identidades Africanas” completam a obra. E são milimetricamente analisados pelo autor. Gostaria, até, de comentá-los um a um, mas, nosso espaço na crítica literária é limitado e não um estudo acadêmico. Deixo aos leitores que cada qual faça a sua avaliação.

Reservo-me, ademais, a fazer mais um pequeno comentário sobre o epílogo do livro, diria, emocionante, quando Appiah faz uma homenagem-referência ao seu pai no momento do seu funeral que, vai muito além da emoção uma vez que o autor leva aos seus leitores traços da cultura deste povo o que ele clássica “uma oportunidade de fortalecer e reafirmar os laços que me unem a Gana e a Casa do Meu Pai; e ao mesmo tempo, tensionar minha lealdade ao meu rei e ao clã materno do meu pai”.

Há uma profundidade filosófica muito visceral no texto que descreve as linhas centrais do epílogo mostrando, exatamente, que, embora sua formação intelectual acadêmica tenha sido feita em Cambridge, na pátria britânica imperialista de Gana, e morar e exercer sua profissão nos Estados Unidos, Gana nunca saiu de si, do seu eu, e também não há nenhuma contradição nisso, como diz o indiano Amartya Sen, uma pessoa pode ter dupla identidade, amando ambas, e pode ser o que assim quiser, filósofo, matemático, gay, sacerdote, vegetariano e o que desejar.

No final, após descrever todo o ritual achante do sepultamento de Joe e qual seria o seu sucessor na linhagem Akroma-Ampim e o conflito que foi gerado entre o monarca e o chefe de Estado, isto é, entre o povo Achanti e Gana, cita um provérbio ganês que diz o seguinte: “O clã materno é como a floresta, quando se está fora, ela é densa, quando se está dentro, vê-se que cada árvore tem sua posição própria”. 

E completa: “Talvez eu ainda não tenha desonrado minhas famílias e seus nomes. Mas, enquanto viver, sei que não estarei fora dessas florestas”.