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Rosa de Lima

ROSA DE LIMA COMENTA PELE NEGRA, MASCARAS BRANCAS; DE FRANTZ FANON

Aos olhos de hoje é preciso observar a época em que Fanon escreveu “Pele Negra, Máscaras Brancas”, 1952, no pós II Guerra Mundial quando a França, a Inglaterra, Portugal e Bélgica mantinham colônias em países do Caribe e da África
20/10/2023 às 10:18
   Há livros que se tornam emblemáticos porque encerram conteúdos que mexem com temas modificadores de caminhos que são percorridos pelos homens nas sociedades e têm forte impacto na vida das pessoas, no sentido de mudar pensamentos, aprimorar conceitos, enfim, servirem como cartilhas com textos que são estudados, analisados, debatidos e seguidos.

  Poderia citar vários desses compêndios e aproveito para falar de um deles, a obra de Franz Fanon intitulada "Pele Negra, Máscaras Brancas" (Editora UBU, SP, 5ª impressão, 2023, tradução Sebastião Nascimento, 311 páginas, textos complementares de Francis Jeanson e Paulo Gilroy, R$65,00 nos portais da internet) considerado um dos mais influentes clássicos da luta anticolonial e antirracista do mundo ocidental, a partir de uma interpretação psicanalítica da cultura negra tomando como base a Martinica, sua terra natal, uma possessão francesa no Caribe antilhano e sua formação como médico psiquiatra em Lyon, França.

  Fanon - negro retinto - sofre um intenso choque cultural quando se muda de Fort-de-France, capital da Martinica e local onde nasceu para viver e estudar na França, e a partir dessa mudança vai observar que, embora criado para ser um francês, já falava e escrevia em francês, o pensar em francês e a colonização que seu povo experimentava nas Antilhas merecia uma análise de pensamento bem distinto do que impunha a Colônia e isso teria que mudar, se modificar. E essa rebelião, a partir do exemplo da Martinica, um pequeno lugar no mapa mundi poderia ser ampliada como exemplo para outros povos colonizados e um alerta para a África, para o Brasil, para América Espanhol, enfim, para o mundo.

  Eis, pois, o enredo complexo onde vai navegar a pena de Fanon mesclando a política com a psiquiatria organizando uma obra que se tornou um símbolo dessa luta anticolonial. E, em essência, o que defende Fanon, esse jovem martinicano de vida curta, porém, agitadíssima nascido em 1925, militar na II Mundial e revolucionário da FNL da Argélia, que morreu aos 36 anos de idade vitimado por um câncer? 

Exatamente um grito de liberdade, um pensar diferenciado do que era praticado pelos colonizadores rumo a um novo humanismo, entendendo, como diz, que: “A civilização branca e a cultura europeia impuseram ao negro um desvio existencial”. Mostraremos – revela o autor – que “aquilo que é chamado alma negra é uma construção do branco”.

Para Fanon o negro tem duas dimensões: “Uma com seu semelhante e outra com o branco. Um negro se comporta de modo diverso com um branco e com outro negro. Que essa cissiparidade seja consequência direta da aventura colonialista, não resta nenhuma dúvida...Que ela alimenta sua veia principal no coração das diversas teorias que pretenderam fazer do negro o lento encaminhamento do macaco para o homem, ninguém ousa contestar”.

Esse foi o primeiro questionamento que fez a si próprio quando iniciou os estudos de medicina em Lyon de “tão mais branco ser o negro antilhano, quanto mais tiver incorporado a língua francesa”. Esse confronto com a linguagem trazia embutido o sepultamento da originalidade cultural do seu povo, o que valia, também, para todos os povos que estavam sendo colonizados, não só em francês, mas também em inglês e em português, na África.

Ou seja, o uso de uma língua estrangeira nas comunidades – países menores e/ou maiores – impondo a prevalência de uma cultura estranha a que estavam acostumados, no jugo colonizador, embotava o pensamento do negro, expurgava todo o seu valor ancestral até de sua filosofia popular, e transformava os seres noutros seres. E isso não poderia prosseguir. “Talvez se encontre a origem dos esforços dos negros contemporâneos: custe o que custar, provar ao mundo branco a existência de uma civilização negra”.

Aos olhos de hoje é preciso observar a época em que Fanon escreveu “Pele Negra, Máscaras Brancas”, 1952, no pós II Guerra Mundial quando a França, a Inglaterra, Portugal e Bélgica mantinham colônias em países do Caribe e da África. Portanto, sua visão revolucionária em teses que ajudaram a modificar esse cenário, ideias e muitas revoltas (ele, inclusive integrou da FLN das lutas pela independência da Argélia, da França, e está sepultado em Argel) foram fundamentais no encaminhamento desse processo. Não há, salvo exceções, lutas revolucionários que não tivessem seus teóricos literatos, desde Marx e Mandela.

E, Fanon, propositadamente, escreveu “Pele Negra, Máscaras Brancas” com essa finalidade e polemiza em alerta ao bordar temas tão sutis como nos capítulos em que trata da “A mulher de cor e o branco!” e “I homem de cor negra e a branca”, o suposto complexo de dependência do colonizado e o negro e a psicopatologia. Trata-se, pois, de um livro com abordagens profundas e que, até então, 1952, não havia sido trazidas à luz dos debates e mesmo de observações comportamentais ao negro.

Comenta Fanon a respeito de Je Suis Martiniquaise: “Queria ter me casado, mas com um branco. Só que uma mulher de cor nunca é respeitável o bastante aos olhos de um branco. Por mais que a ame”.
A escritora e psicóloga portuguesa Grada Kilomba, autora do prefácio da obra de Fanon, diz que o livro “Pele Negra, Máscaras Brancas” mudou radicalmente seu mundo e “tornou-se o centro de todos os meus trabalhos, tanto literários como artísticos”. 

Grada destaca, ainda, que Fanon cometeu um “erra fatal” quando fala do homem como a condição humana. “Por vezes o homem significa ‘Frantz Fanon”, por vezes “homem negro” e às vezes “ser humano”. O sujeito do seu livro é negro e masculino. Em questão está o status ontológico das mulheres negras”.

Haja, pois, interpretações da obra de Fanon que se tornou universal com conceitos que podem ser aplicados em qualquer país que tenha passado por um momento colonizado, caso, por posto, do Brasil. Creio que Fanon, se vivo estivesse (morreu aos 31 anos, em 1961) se orgulharia disso, de influência que sua obra conferiu na fase de libertação desses povos e até mesmo no panafricanismo.