Colunistas / Literatura
Rosa de Lima

ROSA DE LIMA COMENTA "MULHER PRETA NA POLITICA", DE OLÍVIA SANTANA

É, portanto, um livro onde os leitores são direcionados para um determinado ponto de vista que a autora defende piamente, mas que também permite reflexões.
06/10/2023 às 08:30
   A deputada estadual Olivia Santana militante de longa data do Partido Comunista do Brasil (PCdoB) e eleita com mais de 90 mil votos na última eleição foi efetivada por seu partido como pré-candidata a prefeita da capital baiana (2024) integrando a Federação (PCdoB/PV/PT). Aguarda um aprove-se pelo Comitê Político da Base Aliada do governo Jerônimo Rodrigues (PT) se será à sua candidatura que terá apoio do governador e da base (inclui outros partidos como o PSD, PSB, MDB, etc) como única a enfrentar o prefeito Bruno Reis, candidato natural à reeleição. 

   Quem conhece Olivia sabe que, provavelmente, ela insistirá na sua pré-candidatura ao menos no primeiro turno ainda que não seja a preferencial da base governista, uma vez que nada teria a perder visto que a eleição é decidida em dois turnos na capital. O mais sensato, no entanto, é esperar o que vai acontecer sem emitir uma opinião que possa significação especulação.

  Como não sou versada em política e sim em literatura reservo-me a comentar o livro escrito pela deputada já citada intitulado "Mulher Preta na Política" (Editora Malê, Rio, 2023, 225 páginas, capa Dandara Santana, foto da capa de Saulo Kainuma, R$40,00 à venda nos portais da internet) uma obra autobiográfica onde ela revela sua trajetória de vida desde o nascimento numa área favelizada de Salvador, a ocupação beira mar de Ondina conhecida por "Bico de Ferro", a luta de sua família sobretudo da mãe pela sobrevivência e nos cuidados com as filhas já residindo em barraco na Boca do Rio, bairro para onde foram desterrados.

  Posteriormente, sua família transferiu-se para o Alto da Canjira, Engenho Velho, e de como conseguiu com trabalho árduo e dedicação, obter um diploma em nível superior na área da pedagogia e se tornar militante de movimentos sociais e políticos, alcançando patamares de destaque no serviço público já sendo secretária de Educação, do Município de Salvador; e secretária de Estado, do Trabalho, Emprego e Renda, além de vereadora e deputada.

  Quem conta é a autora: “Quando tinha menos de 4 anos numa ação sumária imposta pelo então prefeito Antônio Carlos Magalhães, através decreto 3816/1970, fomos jogadas no bairro da Boca do Rio, onde os desterrados da cidade, em meio ao desespero de perder o quase nada que possuíam, precisavam levantar novos casebres para habitar. Um lugar onde não havia habitação, nem esgotamento sanitário, nenhuma infraestrutura e ainda tomado por uma grande escuridão durante a noite, já que energia elétrica também não havia()...Minha mãe resolveu vender o barraco da Boca do Rio e com o dinheiro comprou as paredes de uma casa e o direito de morar nela por 7 anos, no Alto da Canjira, também sem água e energia elétrica()..Entretanto era bem mais perto da Barra, onde minha mãe trabalhava na residência de um político chamado Ney Ferreira”.

  Trata-se, pois, de obra em que a autora vai descrevendo cada passo de sua vida e revelando, paralelamente, os enfrentamentos que passou e sofreu por ser uma jovem negra, desde o racismo e dificuldades inerentes à sua condição social, até mesmo boicote dentro do seu partido quando não teve o beneplácito de um colega, o ex-deputado Álvaro Gomes, para que assumisse a presidência do Fórum Nacional de Secretários do Trabalho (Fonset), indicando a representante de Goiás e defendendo o nome de outro secretário para ocupar a vice-presidência da Regional Nordeste.

  “Sabe aquela história da solidão da mulher negra? Fala-se muito dessa solidão no plano afetivo, mas ela é muito presente na política, território tão hegemonizado por homens brancos de norte a sul do país. Naquele momento eu me senti imensamente sozinha, e uma decepção enorme com a atitude de um camarada de partido que me atingiu. Contudo, apesar do grande e visível constrangimento, tive coragem de reagir, apresentando e defendendo a minha candidatura () ... e dessa forma fui eleita para dirigir a Regional NE superando as lamentáveis mesquinharias e ressentimentos do ex-secretário que seu substitui na SETRE”.

  Olivia não tem papas na língua e em "A Mulher Preta na Política" revela todas as dificuldades que as mulheres enfrentam na carreira política, especialmente, as negras. Evidencia-se que o livro não é um “Quarto de Despejo”, da Carolina de Jesus, que marcou época por denunciar os horrores da favelização humana com anotações poéticas e sim algo mais à frente no sentido político da palavra, um manifesto ou assemelhado, ainda que haja citações de personalidades do mundo negro internacional sobretudo as norte-americanas, frases e conceitos enaltecedores da necessidade de se imporem como gente honrada e altiva.

A rigor, o que Olivia oferece aos seus leitores é uma narrativa bem estruturada e alicerçada na sua experiência de vida e da política reforçada com uma bibliografia de autores que analisam a trajetória do negro no Ocidente, a escravidão, o racismo, a luta por um mundo mais justo distante das garras do capitalismo e do domínio do homem branco.

  “Quando abordamos neste livro a questão da imagem das mulheres negras, é porque sabemos que, ao fechar os olhos e pensar em alguém em posição de liderança, não é a mulher negra a primeira a emergir nas mentes da população, em geral, tampouco dos eleitores e eleitoras”, diz. 

  E acrescenta: “E, mesmo quem conseguiu passar no seletivo funil imposto pelo sistema, se depara, frequentemente, com a sua posição posta em dúvida. A população (brasileira) foi treinada para associar a imagem de líder ao homem branco, raça, classe, gênero, orientação sexual caminham entrelaçadas. Se 75% da população mais pobre é negra, a maioria negra que participa da classe média ou rica será vista como fora de lugar e confundida com os pobres e marginalizados”.

Militante do PcdoB de raiz, estudiosa de Marx e outros autores, a escritora é cáustica com o capitalismo, duríssima contra o que considera conservadores que não aceitam a nova realidade da família brasileira, a família LGBTQIAP, a ascensão dos povos indígenas, os atributos de gênero, e trabalha todo o texto nessa direção com o identitarismo que certamente considera o correto. 

É, portanto, um livro onde os leitores são direcionados para um determinado ponto de vista que a autora defende piamente, mas que também permite reflexões. Ou seja, quem não concorda com o que a autora expõe, paciência, ou encarra a leitura ou vai até o fim ao menos para ter um conhecimento mais aprofundado do que pensa uma comunista, feminista e ativista dos direitos das mulheres negras.

Quem fala agora é Olivia: “As reflexões aqui desenvolvidas requerem mais atenção de outras companheiras que têm suas experiências em processos eleitorais e de cientistas políticas sobre como o racismo impacta nos caminhos de todas nós, mulheres negras, em direção aos poderes no sistema democrático liberal vigente no Brasil e as estratégias que devem ser adotadas para o empoderamento que alcancem as pretas, as mais retintas e mais alijadas”. 

 Em síntese, o que Olivia defende no seu manifesto, bem escrito, socializante e também com fortes críticas ao “bolsonarismo” e pinceladas de esperança no “lulismo” é de que “as mulheres negras precisam ser vistas, encorajadas e incorporadas ao projeto de nação com mobilidade sócio econômica e política, considerando suas necessidades específicas”.

Ou seja, “as que mais demandam investimentos para enfrentar e superar barreiras de gênero e raça, impeditivas da fluidez dos nossos passos em direção ao centro do poder”.

Creio que ofereço aos nossos leitores um resumo desta obra de Olivia Santana que, independente dos aspectos relacionados à política partidária e a mais abrangente, mostra algumas vivências e traços sociais da cidade do Salvador e da Bahia, nada empíricos ou poéticos, e sim a realidade nua e crua.