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Rosa de Lima

ROSA DE LIMA COMENTA A PELEJA DOS ZUAVOS, ROMANCE DE JOLIVALDO FREITAS

Obra densa que narra um episódio na região do São Francisco, Bahia, de grilagem de terras e do mandonismo de um coronel da época do Império
29/09/2023 às 08:29
  O jornalista Jolivaldo Freitas é reconhecido cronista de Salvador autor de "Histórias da Bahia - Jeito Baiano"; Baianidade, Baianada, Balangandãs & Mandigas"; "Histórias e Folclore da Avenida Sete" e sua pena já navegou em publicações sobre contos e poemas. Diria que o aprecio mais como cronista nato que é, por sua linguagem baianês e conhecimento da Cidade da Bahia alicerçado na época em que atuou como jornalista.

Recentemente, através da Fundação Pedro Calmon da Secretaria de Cultura do Estado, estreou na seara do romance publicando "A Peleja dos Zuavos Baianos Contra Dom Pedro, os Gaúchos e o Satanás (FPE/EGBA, 554 páginas, capa Wikimedia Commons ilustração Zuavos e pintura de Victor Meireles, à venda no Amazon.com) uma obra densa, bem estruturada, onde expõe a narrativa de um grupo de negros que lutou na guerra do Paraguai reforçando o Batalhão de Voluntários da Pátria na força da tríplice aliança com a Argentina e o Uruguai contra o Paraguai do ditador Solano Lopes, derrotando-o.

Vitorioso na guerra, o governo imperial falido e politicamente combalido, enfrentou o avanço do movimento abolicionista forçando a regente princesa Isabel a abolir a escravidão formal, em 1888, o que também contribuiu para o fim do Império e a proclamação da República, com a família real exilando-se na França.

A rigor, mesmo com o fim do Império, a escravidão seguiu adiante na República uma vez que não houve um programa de amparo aos libertos, em educação, saúde e trabalho. A história do livro de Jolivaldo se passa nesses dois períodos governamentais.

 Diria que o autor ainda deixa transparecer nesta obra sua veia mais de cronista do que de romancista com uma infinidade de dados, exaustivos até, e que poderiam ser enxugados para facilitar a compreensão dos leitores, concentrando o texto mais na história em si, que é agradável, entrelaçando-se a história real com a ficção. 

Como há inúmeros "feedbacks" no decorrer do texto isso exige uma atenção toda especial dos leitores para que não se percam. Estamos diante de um livro que não se lê de um fôlego e consome-se um tempo maior de leitura. Falamos de um romance que envolve quatro gerações da família de um juiz da Salvador que foi atuar na região do São Francisco, na fictícia Barra das Cinzas, e por lá descobre - até em função das circunstâncias do cargo e pesquisas – a sua verdadeira história ancestral.

Enfrenta, desde que põe os pés em Barra das Cinzas ao preconceito e sentimento de racismo velado por ser um magistrado negro, tal como o seu avô o coletor Orum. Preconceito à flor da pele sobretudo por parte das autoridades locais e do reverendo da paróquia. Digamos, assim, de toda a elite dos poderes executivo e legislativo compactuada com parte da população, sob as rédeas e comando de um coronel autoritário e grileiro de terras da região do São Francisco, típico representante do mandonismo da era imperial.

E quando expõe aos olhos da comunidade de que aquelas terras a perder de vista em Barra das Cinzas lhes pertenciam por direito através de doação do imperador Pedro II a seu avô (e consequentemente a ele, o herdeiro legal) que fora o comandante dos Zuavos na Guerra do Paraguai, Gonçalo Cassumba Mbongo Orum, descendente do Império de Oyo, “militar, liberto, muito inteligente e esperto que se tornou amigo de Dom Pedro II”.

O desenrolar da trama, portanto, é complexa e extensa e vai se ambientar em dois cenários distintos, a capital da Bahia, onde o juiz retornara aposentado para terminar os seus dias, depois de abrir mão do direito das terras permitindo que nelas fossem implementado um assentamento de um órgão governamental da época da mais recente ditadura militar, e que isso fosse feito com os homens e mulheres que já viviam nas terras.

Até chegar a esse enredo final, o autor vai decodificando a história passo a passo, descreve como foram os primeiros tempos do juiz em Barra e como desvenda a trajetória do seu avô Orum, gratificado por decreto imperial dono das terras e nomeado coletor de impostos por dom Pedro II, o cerco efetuado pelos jagunços do coronel explorador de sua imensa propriedade, beneficiário de um veio de ouro e que pouco produzia em agricultura e possuía em pecuária, vivendo o povo no sofrimento e na exploração da sua chibata, sem compartilhamento da riqueza.

Até que o coronel, inconformado com a presença e atuação do coletor, um negro zuavo, promove um cerco ao local onde Orum morava e este resiste as balas dos fuzis da jagunçada se utilizando de estratégias que aprendera na Guerra do Paraguai, consegue enviar um emissário solicitando ajuda de reforço em armas do intendente em Juazeiro e de reminiscentes dos Zuavos que foram arregimentados em Salvador para protege-lo.

Orum, no entanto, morre e os reminiscentes da Guerra do Paraguai que foram para Barra das Cinzas também são exterminados e quando os homens do Exército e da Marinha chegam para protegê-los já era tarde. 

O romance, portanto, a partir daí ganha contornos finais com a “evaporação do coronel para não se sabe onde, os Progressistas e Conservadores iniciam confabulações reservadas e misteriosas” pelo espólio das terras, sem acordo, o que vai resultar numa guerra civil lembrando os tempos passados da “Serração” em que se matava por qualquer rixa. “E quando menos se esperava a cidade estava de novo reduzida a cinzas”. 

Na volta à memória do juiz acamado o autor revela a existência de um “herdeiro” das terras filho do coronel, “aquele que vinha a ser o único filho do coronel Geraldo fruto de uma relação com uma índia Mocoaze”, e que vivia em Barreiras. 

E, com o passar dos anos, resolvidas as questões jurídicas e assentados pela Codevasf os antigos moradores, as cobiçadas terras foram cobertas pelo lago de Sobradinho e o juiz fica sabendo, antes de sua morte, natural, que o tal coronelzinho era irmão de sangue do personagem Elpídio, ambos filhos de Maria Orum (filha de Gonçalo) com o coronel Geraldo.

Enfim, um romance com enredo complexo e que, em nossa opinião, o leitor não se sensibiliza com a narrativa, com emoção um pouco mais forte no final. Diria que, se trata, no nosso epílogo, de uma boa estreia do autor no mundo do romance e o melhor em diálogos se dá nas conversas entre o juiz e o barbeiro Paixão Babosa, seu confidente na Cidade da Bahia.