Colunistas / Literatura
Rosa de Lima

ROSA DE LIMA COMENTA DOM QUIXOTE DA MANCHA, DE MIGUEL DE CERVANTES a

As aventuras de um fidalgo sonhador da Espanha e seu escudeiro Sancho Pança
23/09/2023 às 09:04
  Reler o "Engenhoso Fidalgo D. Quixote da Mancha", de Miguel de Cervantes Saavedra, é muito prazeroso e há uma observação generalizada entre os críticos literários de que "nenhum leitor parece ler o mesmo Dom Quixote", pois, existem inúmeras interpretações sobre o texto - quer dos estudiosos acadêmicos dos enunciados pelo escritor espanhol, obra produzida em 1605; quer dos críticos e mesmo do público de uma forma geral.

O público, então, tem opiniões e visões tão próprias e particulares, uma grande parte incorporando a personagem do herói épico improvável criado por Cervantes, de defensores dos pobres e oprimidos, defensores de causas impossíveis, sonhadores de um mundo mais igual e menos perverso com os seres humanos e os animais, que receberam os epítetos de quixotescos. Ou seja, todo aquele que imagina ser possível com o uso de suas lanças e ações individuais (a até coletivas) em consertar o pau que nasce torto (como diz Gordurinha, morre torto) ganharam esse codinome de "ser quixotesco" ou aquele que "sonha, sonha, luta e luta verbalmente em mudar o mundo e não consegue". 

Dom Quixote (o livro) é inspirador e são muitos os autores internacionais e nacionais que se debruçaram sobre a obra de Cervantes, desde Harold Bloom (norte americano) e Jorge Luís Borges (argentino); aos brasileiros Machado de Assis (vide Memórias Póstumas de Braz Cubas) e Carlos Drummond de Andrade (poemas quixotescos). 

A admiração por este livro considerado a obra prima mundial número 1 vem desde seu lançamento e Cervantes só o fez depois de passar por experiências pessoais arriscadíssimas, desde a época em que foi militar e lutou na batalha de Lepanto (entre outras) onde perdeu uma mão. Nascido em Alcalá de Hernanes, em 1547, morou em Valladolid, Córdoba, Sevilha e Madri, onde estreou na literatura no ano de 1567. Nas suas aventuras pela Espanha e África ficou preso em Argel por 5 anos onde delineou capítulo do Cativo. 
E o que diz Cervantes nessa obra monumental?  

É ele quem conta: - Eu gostaria que esse livro, como filho da razão, fosse o mais formoso, o mais primoroso e o mais judicioso e agudo que se pudesse imaginar. Mas, não pude eu contravir a ordem da natureza, que nela cada coisa engendra a seu semelhante. E assim, o que poderá engendrar o estéril e mal cultivado engenho meu, senão a história de um filho seco, murcho, antojadiço e cheio de pensamentos díspares e nunca imaginados por ninguém mais, exatamente como quem foi engendrado num cárcere, onde toda a incomodidade tem assento e onde todo triste barulho faz sua habitação? O sossego, o lugar aprazível, a amenidade dos campos, a serenidade dos céus, o murmurar das fontes, a quietude do espírito, são de grã ajuda para que as musas mais estéreis se mostrem fecundas e ofereçam partos ao mundo que o cumulem de maravilha e contentamento".

Creio que essa premonição de Cervantes foi alcançada com pleno êxito uma vez que expõe nas aventuras de Quixote e do seu agregado Sancho Pança, que se considerava não um pai de Quixote e sim padrasto, "pois nem és seu parente nem seu amigo, e tens tua alma em teu corpo e tem o teu livre arbítrio como qualquer, e estás em tua casa, onde és senhor dela, como rei dos seus tributos, e sabes do que comumente se diz: - Debaixo do teu manto o rei mato()... Tudo o que se exime e faz livre de todo o respeito e obrigação, e, assim, podes dizer da história tudo aquilo que te parecer, sem receio de que te caluniem pela crítica nem te premiem o elogio que fizeres a ela".

Cervantes destaca que não tem erudição nem vai fazer anotações de pé de página sobre seu livro e determina que o senhor D. Quixote permaneça sepultado em seus arquivos na Mancha, “até que o céu depare quem o adorne de tantas coisas quantas lhe faltam, porque eu me acho incapaz de remediá-las por minha insuficiência e poucas letras, e porque naturalmente sou acomodado e preguiçoso para andar buscando autores que dirijam o que seu dizer perfeitamente sem eles". 

O que Cervantes quer dizer com isso é que sua obra seria tão original, "sendo causa bastante para pôr-me nela e que de mim ouvistes" e seria diferenciada de outras já escritas como fazem todos "pela ordem do á-bê-cê" começando por Aristóteles e acabando com Xenofonte dando conhecimento, ao mundo de uma história que seria "luz e espelho de toda a cavalaria andante". 

E a obra de Cervantes trata exatamente das andanças do mais casto, enamorado e mais valente cavaleiro do Campo de Montiel e do seu escudeiro Sancho Pança com qual dialoga sobre os feitos e grandes heróis da cavalaria.

Dom Quixote (a obra) é um romance da cavalaria que expõe as aventuras de um fidalgo de um vilarejo da Mancha e, como já dito anteriormente, cada leitor te uma visão diferenciada do outro e a cronista opina por dever de oficio dando pitacos em suas preferências nas passagens do cavaleiro andante, diria, ao meu gosto e (parece também dos brasileiros de uma forma geral) as passagens mais admiradas e comentadas são as do embate com os moinhos de vento e do que aconteceu ao Quixote na Serra Morena.

Diria, no entanto, que todas as passagens do herói da Mancha têm lições e ensinamentos a tirar, cada qual mais criativa do que a outra, daí a valoração do livro, o que leva o leitor a lê-lo com prazer e torcendo para que não haja um fim. O próprio Cervantes, diante de tanto sucesso que fez o livro desde a sua primeira impressão, imaginou dar uma sequência, mas, faleceu antes disso.

O autor ao associar os moinhos de vento (muito comuns na Europa nessa época, com suas enormes hastes) a gigantes assim narrou: - A ventura será grandiosa guiando nossas coisas melhor do que pudéramos desejar; porque, como podes ver, amigo Sancho Pança, ali se descobrem trinta ou pouco mais descomunais gigantes, com os quais penso travar batalha para tirar a vida de todos, com cujo despojo começaremos a enriquecer, porque esta é a boa guerra, e é grão serviço a Deus tirar tão má semente da face da terra.
 - Que gigantes, disse Sancho Pança.

- Aqueles que ali vês – respondeu seu senhor – de braços longos, que os costumam ter alguns de quase duas léguas.

O diálogo segue com Pança avisando que são moinhos de vento e Quixote refutando que seu companheiro não era versado em aventuras e esporou seu cavalo Rocinante e arremeteu contra os “gigantes” dando uma lançada na pá, “girou-a o vento com tanta fúria, que fez a lança em pedaços, levando atrás de si o cavalo e o cavaleiro, que foi rodando com mui mal estado pelo campo”.

  Creio que meus abnegados leitores já devem ter visto essas cenas em filmes e vídeos na TV, pois, se trata de uma das cenas prediletas de quem já colocou a aventura do cavaleiro da Mancha na tela.
 
  Paro por aqui para não me alongar destacando, ainda, durante toda a narrativa o amor que Quixote tinha a Dulcineia, a boa e bela senhora que hipoteticamente se apaixonara e para quem tudo o que fazia em aventuras era remetido em pensamento a esse amor ou pelo amor.