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Rosa de Lima

ROSA DE LIMA COMENTA RELATOS DE UMA GUERRA PRETA, DE NELSON MACA

É uma obra que revela, também, uma forte exposição corajosa do autor em mostrar uma exposição de fatos que é permanente na cidade do Salvador
08/09/2023 às 09:01
      O professor de Literatura Brasileira da UFBA, Nelson Maca, um paranaense radicado em Salvador há muitos anos, desde muito jovem quando estudante habitou a Casa Universitária do Largo da Vitória, é autor do livro "Relatos da Guerra Preta" (Ed Black Atitude, 2020, 216 páginas, capa Welon Santos, ilustrações Francisco Benevides, fotos Leo Ornelas, R$40,00) uma narrativa forte, emblemática, sobre o cotidiano da comunidade negra da capital baiana. 

   O mais sensato seria o autor ter posto no título do livro e no enunciado de uma forma geral, em quase todos os textos, ora mais parecendo um ensaio e noutro campo literário crônicas urbanas, "Relatos de uma Guerra Preta-Mestiça", uma vez que a população predominante na capital é a mestiça e sofre os mesmos problemas detectados e analisados pelo autor no seu trabalho. O autor cita-os como contos.

   Maca, no entanto, preferiu situar os seus relatos com o fenótipo preto (a), uma opção que obedece a política do neogrego brasis, perfeitamente enquadrada no binarismo que povoa o cenário nacional onde só existe, nessa visão, dois segmentos sociologicamente estruturados, os negros e os brancos. Quando, sabemos, não é bem assim. Há uma variação muito grande e densa de mestiços de toda a natureza e que habita a cidade do Salvador e são a maioria da população.

   Do ponto de vista do que nos interessa ou é objeto do nosso comentário, a veia literária, o trabalho de linguística e do correr da pena, Maca o faz com sabedoria e oferece aos leitores textos com variadas linguagens, ora obedecendo as regras da língua portuguesa como os eruditos o fazem; e na maioria das crônicas se apropriando da linguagem popular, no puro baianês, o que é mais difícil de ser feito.

   Mas, ao mesmo tempo, é bom observar que sendo o autor um paranaense, tal como o fluminense (do interior do Rio) Nivaldo Lariú, autor do "Dicionário do Baianês", por natureza, deve ter se interessando mais por essa linguagem e visto como ela é sutil, própria, pragmática, o que os nativos locais, já acostumados desde a infância com esse linguajar de molejo e das contrações estão habituados e não sentem tanto essa diferença.

   Isso é curioso. A percepção de quem vem de fora é sempre maior. Tenho a impressão que pertinente e o autor o faz com densidade no livro porque também é ator, personagem que vivenciou e vivencia no dia-a-dia essa comunicação popular vigente em boa parte da população. Na real, com tantos anos de Salvador, Maca já domina com fluidez essa linguagem e consegue passá-la para a escrita, o que poucos conseguem com tanto domínio.

   O livro não contém uma narrativa linear padronizada como nos compêndios de crônicas urbanas e há uma variação intensa no contexto da obra, quer quando trata do que intitula "Olhos de Orogbo" em pequenos textos, pílulas, e dá um recado da neonegritude onde destaca que "na Bahia, eu miro dois. Eu foco dois. Dois universos em desarmonia. Dois equilíbrios em dissimetria. Na minha lente a Bahia preta resiste, insiste, expira e respira. E continua viva ainda cá, meio ao jardim do inimigo". 

  O autor, portanto, se lança como uma espécie de guerrilheiro das letras para expor as desigualdades sociais existentes na população de Salvador que, embora sejam públicas e notórias, ele as põe de forma mais contundente como uma denúncia, um alerta. Diz no tópico "Bahia": "Eu registro as celebrações da grande família para os de dentro. Lá fora, eu gravo o ruído profundo da Bahia Preta desafiando o som bárbaro da outra metade e lanço para o mundo. Eu as amplio no mesmo enfoque na figuração. E jogo lenha na fogueira".

  Maca prega um ativismo individualizado sem um chamamento direto ao coletivo, uma advertência às autoridades - digamos assim - deixando que cada qual interprete ao seu modo e dispor a sua mensagem. Como acentua no tópico "Orogbo": "Sou o correspondente sem retoque no campo da pólvora (em minúscula), ainda que a guerra preta que aqui está não tenha sido declarada. Olhos de Orogbo. Flashes de verão na baixa estação. Pavio curto. Faísca. Curto-circuito. Sou os olhos do rei enfiados nos buracos do seu crânio".

  Quem assim quiser que o siga. O livro tem citações autobiográficas do autor como está em "A passagem do meio" em que recorda suas caminhadas às terças e domingos entre a R2 (Largo da Vitória) e o Pelourinho e as observações que fazia e os contrastes entre o que classifica de "Bahia branca" (o Corredor da Vitória) e a Bahia preta (a partir do Campo Grande) até o centro antigo no que chama "as estranhas do bairro do Pelourinho()...tudo antes da tal reforma dos anos noventa. Vielas encruzas prostíbulos academias de capoeira trançadeiras cadeiras nas portas baianas de acarajés e seus tabuleiros malandros e arruaceiros famílias inteiras crianças aos montes cortiços prédios coloniais ruinas cachorros gatos sacis exus e um som transcendental, REGGAE". Escrito assim mesmo, sem vírgulas.

  Maca, pois, situa nesse "oásis da jamaicanidade" um espaço seu, "Ah!, eu tinha um clã! Jerusalém, here I'm". Já no texto seguinte "Lealdade", o autor também ator com seu pálio vinho conversa com o amigo Pinduka e tem uma abordagem no trânsito por um cidadão da rua, descamisado, pobre, "tetas feridas de inúmeras chagas" e trava um diálogo com esse personagem, ai usando a linguagem da rua, "- Ó paí, Nelsão, na moral, consegue um troco ai pro seu irmão. Tamo no rango, nego". O diálogo segue, Maca responde: - Pô Joabe, na moral, man. Não tenho mermo.

  É nesse texto que o autor começa a expor aos leitores a linguagem da rua, neste caso, de um descamisado que puxou uma faca para intimidá-lo: "Gelei. A lâmina do metal enferrujada levitou a altura do meu pescoço () ...Pinduka ao meu lado, em silêncio de desaparição()". Antes de seguir no diálogo, eis a mensagem posta pelo autor: "Esta é a calada da noite da Bahia Preta do dia seguinte. Herdeira da falsa abolição". E segue: - Que isso, Joabe! Qualé a sua! Se planete, irmão! - Cófoi Nelsão. - Qual foi o que rapá? Tá me tirando de boy, é?

  O diálogo segue e termina em paz e o que se percebe, nessa primeira exposição da vida na rua na noite baiana de Salvador, encontro entre um professor negro da R2 e um descamisado, na exposição feita pelo autor (Joabe) era uma pessoa conhecida de um ponto de pedintes da rua, da mesma origem pobre e que, na verdade, ao puxar uma faca o homem precisava desabafar e trocar ideias. Lança à luz dos leitores uma mensagem objetiva no final: "Ainda pisamos nas incontáveis minas remanescentes nos descaminhos que a guerra preta arma para nós".

  Diria que cada texto tem um contexto e os leitores precisam ficar atentos a essas mudanças no correr da pena do autor, o que também, em nossa opinião, deixa o livro mais agradável de ser lido.

  Maca, portanto, é multi interpretativo da cena baiana de Salvador e vai ao agudo na visão popular sobre a ação da Polícia nos bairros que, no dizer do gueto chega atirando na mestiçagem, o comportamento da imprensa, de como a força policial aborda as pessoas nas blitzs nos ônibus aquelas em que são obrigadas a descer encostar as mãos no muro ou pô-las nas cabeças, e abrindo as pernas, sem o direito de olhar pra trás e contestar civilizadamente a ação do estado - a denominada revista; navega a pena nos auto de resistência, na figura do poeta marginal, na baixa estação turística no centro histórico, nos tipos bem populares da cena urbana como Paulinha Gabiru, etc, diálogos entre ‘brotheres’ e o os furtos de celulares, a farinha pouca meu pirão primeiro, enfim, um passeio pela cidade.

  No nosso entendimento, o melhor dos textos, que talvez sintetize todo o teor do livro, no sentido da dura realidade das ruas, está na crônica intitulada "Saidêra", uma pérola sintética do linguajar marginal da família do gueto, do abandono, do desamor à vida, da valorização do berro e da astutez, a execução de um menor (Tiquinho) praticado dentro da tribo por ele ter andado em 'descaminho dentro do buraco' (É o gueto selvagem meu camarado) e um pedido de socorro da familia, bem como todo o diálogo e a dívida permanente. A linguagem usada é admirável.

  - Ah! É mermo? Tá bom. Mais e aí?

  - Tá difice pra nóis suportá.

  - É, tio, foi pesado mermo o baguio, Meus pêsame. Ele deve tá num bom lugar. Cês sabe queu num tenho nada a vê co'essa parada, né?

  - Claro, fio, nós já cabemo. E respeitamo muito ocê.

  - Possa crê. Brigado.

                                                                         ***

  Bem, paramos por aqui e creio que oferecemos aos nossos leitores uma visão geral deste livro de Nelson Maca e o recomendamos. É uma obra que revela, também, uma forte exposição corajosa do autor em mostrar uma exposição de fatos que é permanente na cidade do Salvador - muita gente faz de conta que não existe, tá tudo normal -  e o mundo brutal da repressão.