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Rosa de Lima

LITERATURA: ROSA DE LIMA COMENTA "PARIS SEC XIX", DE WALTER BENJAMIN

Obra analisa as mudanças na arquitetura e do comportamento humano na virada dos século XIX para o XX
17/02/2023 às 12:33
      A jornalista e escritora Selma Santa Cruz em "Para Entender Paris" (um excelente livro que vamos comentar em breve) diz logo na introdução de sua obra que "não faltam livros sobre Paris, com as mais diferentes abordagens e em quase todos os idiomas. No entanto, a mais fascinante cidade já construída pelo homem é um tema inesgotável".

  Eu já sabia disso, porém, assim imagino, meus leitores ainda não sabem. E observação dessa natureza partindo da pena de uma brasileira que foi correspondente do "Estadão" na cidade luz e por lá anda desde a década de 1970, estudiosa da cultura francesa e conhecedora da capital de andar por suas ruas e sítios históricos, ajuda-nos a entender ainda mais o significado de sua frase.

  A propósito desse cabeçalho arriba, não necessariamente um "nariz de cera" no jargão jornalístico, vamos comentar o livro de Walter Benjamin, "Paris a capital do século XIX" com sub título ... E outros ensaios sobre cidades (Editora L&PM, tradução do alemão de Claudia Abeling com apoio do Goethe Institut, tradução dos textos em francês de Gustavo de Azambuja Feix, impressão 2022, RS, 261 páginas, R$48,00) que retrata o pensamento desse filósofo e ensaísta alemão sobre o fenômeno das cidades dos pontos de vistas da arquitetura, do urbanismo e da condição humana. O olhar dele em Paris se deu nessa dimensão sempre observando as inovações arquitetônicas e os movimentos urbanísticos colocando o homem no contexto.

  Isso parece natural - diriam leitores mais atentos à essa crítica porque a cidade não existe sem o homem - mas não é tão simples assim e depende do olhar do “flâneur”, do andarilho. Muitos de nós passamos pelos locais, admiramos, hoje, fotografamos e gravamos nos iPhones, mas não conseguimos verificar e entender as transformações que possam ter ocorridas na sociedade. Ora, um trem nos conduz a algum lugar. Isso é óbvio. O trem, no entanto, mudou a paisagem urbana a partir do final do século XIX e início do XX com os sistemas metroviários. O metrô de Paris é de 1900.

  Apresentemos, também, aos nossos leitores quem foi Walter Benjamin e tive a felicidade (casual) de residir temporariamente (90 dias) no mesmo prédio da 10, Rue Domblase, que ele morou no século XIX, no 15º Arrondissement. Walter nasceu em Berlim no final do século XIX, de família judia, com formação em filosofia, literatura alemã e história da arte - Freiburg, Berlim, Munique e Berna - em 1933 emigrou para a França, em função da ascensão dos nazistas. Trabalhou como escritor, tradutor e crítico literário. Em 1940, obteve um visto para os EUA, mas não conseguiu sair da França. Na iminência de ser capturado e levado para um Campo de Concentração deu fim a própria vida em Portbou, fronteira entre a França e a Espanha.

 É autor de vários livros e ensaios sobre a cultura alemã, tradutor de livros do francês para o alemão e considerado um pensador radical, de vida bastante tumultuada, errante, com passagens também pela Itália e inúmeras dificuldades financeiras. Diz-se que sua obra sou passou a ser reconhecida após 40 anos depois de sua morte. O que não é incomum esse tipo de acontecimento, sobretudo para quem morreu no meio de uma guerra, 5 anos antes que acabasse o conflito da II Guerra Mundial, e que deixou marcas de destruição muitos fortes na Europa, sobretudo na Alemanha. Então, a recomposição da cultura, dos estudos da literatura e outros, demoraram de acontecer e Benjamin passou a ter um reconhecimento maior sobre sua dialética, pelos anos 1970/1980.

  "Paris a Capital do Século XIX" traduz em textos o universo da cidade do ponto de vista do urbanismo, da arquitetura, como também da condição humana. Na época em que viveu na cidade, a partir de 1933, os elementos visuais foram se modificando na capital francesa com o advento das novas tecnologias em ferro, vidro, aço, o surgimento das "passagens" (centro comerciais precursores dos shoppings centeres), da ampliação dos boulevards e de uma proliferação de "flâneur" além da poesia lírica baudeleriana (Baudelaire é considerado o poeta da cidade e das ruas de Paris) com uma visão mais estética, surgimento da moda e de uma classe média mais empoderada e diferenciada da aristocracia dos anos da monarquia.

  Se os aristocratas nos tempos dos luíses (reis da França com o nome de Luís) se exibiam nos salões com a mudança do regime e os novos tempos a partir da década de 1960, sobretudo, a "burguesia" passou a circular nos cafés, nos boulevards e nas lojas de departamento com sacolas de lojas de grifes que se tornariam famosas ao longo dos anos, até os dias atuais.

   Diz num dos textos: "Balzac foi um dos primeiros a falar das ruinas da burguesia. Mas apenas o Surrealismo abriu o olhar sobre elas. O desenvolvimento das forças produtivas destroçou os símbolos do desejo do século anterior antes ainda que os monumentos que os representavam acabassem destruídos. Esse desenvolvimento emancipou da arte a construção formal do século XIX, assim como no século XVI as ciências se libertaram da filosofia. O primeiro passo foi dado pela arquitetura, como obra de engenharia. A criação da fantasia se prepara prática como criação gráfica publicitária. No folhetim, a poesia se submete à montagem. Todos esses produtos estão em vias de entrar no mercado como mercadorias. Mas ainda hesitam no limiar. Nessa época surgem as passagens e os intérieurs, os pavilhões de exposições e e os panoramas".

  O leitor que estiver atento a esse comentário deverá perceber como Benjamin com seu senso debatedor põe a arquitetura no contexto social dessas mudanças, o que muitos de nós, na prática, não percebemos. Salvo, quando um pensador como ele nos mostrar os caminhos.

  Completa o autor: "Trata-se de reminiscências de um mundo de sonhos. A utilização dos elementos oníricos ao despertar é o caso exemplar do pensamento dialético. Por essa razão o pensamento dialético é órgão do despertar histórico. Afinal, cada época não sonha apenas com a seguinte, mas sonhando ela segue para o despertar. Ela carrega seu fim consigo e o desenvolve - como Hegel já o reconhecera - com engenho. Com os abalos da economia mercantil, começamos a perceber os monumentos da burguesia como ruinas antes mesmo do desmoronamento".

  Ou seja, tudo o que é sólido se desmancha no ar e as mudanças de época em época são inevitáveis. Benjamin, ainda sem concluir seu pensamento, comenta: "Comércio e tráfego são os dois componentes da rua. Nas passagens (centros comerciais), o segundo se extinguiu; o tráfego é rudimentar. A passagem é apenas luxuriante rua de comércio, apenas interessada em despertar o desejo. Visto que nesta rua a seiva se acumula, a mercadoria brota nas suas bordas e se infiltra de maneira fantástica como os tecidos nos tumores. O “flâneur” sabota o tráfego. Ele também não é comprador. É mercadoria".

  Assim segue o pensamento de Walter Benjamin, polemizando, trazendo novos elementos à luz dos debates num momento em que Paris e transformava na arquitetura, no transporte, no comércio, na vida de cada cidadão porque sem este último elemento nada existiria. A percepção dessas mudanças com toda dialética é que faz o livro ser objetivo de atenção e de debates permanentes, até os dias atuais.