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Rosa de Lima

ROSA DE LIMA COMENTA “O CAMINHO DE GUERMANTES”, DE MARCEL PROUST

Ler Proust requer paciência e senso de humor refinado, segundo a comentarista Rosa de Lim
30/12/2022 às 12:45
    Ler Marcel Proust é preciso ter paciência e senso de humor refinado. O autor francês de única obra dividida em 7 volumes trata da existência humana em seu país entre o final do século XIX e início do XX durante fase de transição política da monarquia para república, do caso Dreyfus e da "Belle Époque" exatamente quando os salões da aristocracia entraram em decadência, porém os nobres não perderam a pose e a sustentavam em saraus, jantares e tertúlias onde cada qual imaginava ser erudito, um intelectual de escol. 

  Daí (imagina-se) sendo ainda vistos como reis do universo em termos de cultura incluindo a refinada moda parisiense e seus hábitos e costumes no comer, beber, se divertir, zombar da vida alheia, triturar ouvidos com frases de efeito e assim por diante.

  Proust às vezes se torna enfadonho e com repetições recorrentes de conceitos postos quase sempre na boca dos aristocratas passando, assim, a interlocutor entre o público e essa classe dominante em decadência, mas ao mesmo tempo é viril e crítico mordaz dando estocadas firmes e estonteantes na aristocracia e revelando cenas que remetem ao supérfluo, a pessoas cujo único prazer é mostrar que são pretensamente cultas e sabem cultivar o bom viver às custas da plebe. Descreve cenas em que lacaios e mordomos são pessoas de menor quilate e estão nos salões apenas como subalternos, um ou outro chamando a atenção, também, por sua beleza e possível virilidade. 

  No 3º volume do "Em Busca do Tempo Perdido" intitulado "O Caminho de Guermantes, Companhia das Letras, 464 páginas, tradução de Fernando PY) haja paciência para concluir a leitura do livro diante de tantas tertúlias fúteis e vistas na contemporaneidade como inúteis a escadinha do conhecimento. O leitor, ao entrar neste mundo da aristocracia acaba ficando perdido dentro dele, sem saber quais utilidades lhe trarão essas narrativas, algumas delas exaustivas, cansativas, que explora um ambiente que sequer existe mais na vida real tanto na francesa quanto na sua. 

  Então, qual o sentido de ler um livro dessa natureza?

  Conhecer o retrato de uma época da cultura europeia francesa que era uma luz que se irradiava pelo mundo ocidental e influenciou muitas gente e gerações.

  O que vale (também) - ao nosso ver - são as sutilezas usadas por Proust uma vez que, nas narrativas, o autor se coloca como integrante desta aristocracia - até se apaixonou por uma marquesa - sem saber onde vai chegar e deixando o leitor, igualmente, sem entender o que o autor pretende. 

   Ao revelar o caráter de cada personagem - Robert de Saint-Loup, a princesa de Parma, o duque de Châtellerault, a Marquesa de Guermantes, Monsieur Chrarlus, a Madame de Villeparisis e outras com quem vai convivendo, ou simplesmente encontrando nos salões parisienses, o autor revela apetites amorosos, a consciência de que cada qual tem na sociedade, as falsidades maledicências e perversidades, o esnobismo, o saber literário com citações de autores, toda uma realidade de um momento da sociedade mutante francesa.

  Em pincelas dos diálogos, aqui e acolá, Proust põe à análise dos leitores a hipocrisia, a riqueza, a soberba, o fingimento, a sexualidade, a mesquinharia e tantos outros atributos deixando que cada qual faça a sua interpretação. Nas entrelinhas ele dá a sua opinião e os leitores que façam o mesmo, sem necessariamente concordar com ele.

  Vejamos alguns trechos dos diálogos: - No momento em que eu ia partir, a dama de honor da princesa voltou ao salão por ter se esquecido de levar os cravos maravilhosos, vindos de Guermantes, que a duquesa dera à sra. de Parma. A dama de honor estava muito vermelha, sentia-se que ela fora repreendida, pois a princesa, tão boa com todos, não podia sofrear sua impaciência diante da tolice de sua aia. Assim, esta corria como pressa levando os cravos, mas, para conversar seu aspecto desenvolto e rebelde, falou ao passar por mim: - A princesa acha qe estou atrasada; queríamos que fossemos embora e ainda ter os cravos. Diabo! Não sou um passarinho, não posso estar em vários lugares ao mesmo tempo.

 Sobre relacionamentos: - O duque de Châtellerault cita que "todo mundo se deitava", mas, logo às primeiras palavras, e quando falou da pretensão do sr. de Luxemburgo de que, diante de sua mulher, o sr. de Guermantes se levantasse, a duquesa o fez parar e protestou: - Não, ele é muito ridículo, mas de forma alguma a esse ponto. - Intimamente, eu estava persuadido de que todas as histórias relativas ao sr. de Luxemburgo eram igualmente falsas.

  Ao comentar sobre citações de arte e literatura: - O que me dissera a sra. de Guermantes a respeito dos quadros que seria interessante ver, mesmo de um bonde, era falso, mas continha uma parte de verdade que me foi preciosa depois. Da mesma forma, os versos de Victor Hugo que ela me havia citado eram, é preciso confessá-lo, de uma época anterior à que que ele se tornou mais um homem novo, onde fez aparecer na evolução uma espécie literária ainda desconhecida, dotado de órgãos mais complexos.

  Nesses três exemplos acima o leitor pode sentir observações feitas pelo autor que revelam traços da sociedade aristocrática, a princesa de Parma tendo comportamentos distintos entre seus pares e sua aia e a dama de honor também pontuando (em tom crítico) que não pode ser um passarinho; as maledicências da nobreza dando conta na voz de um duque de que todo mundo ia a cama em sexo, porém, ressalvando-se à dignidade como destacou a duquesa de que não era bem assim, a informação era falsa; e a erudição que era propagada nos salões com muitas citações eram incorretas, mas como não havia um senso crítico, passavam como verdadeiras.

  No "O Caminho de Guermantes", Proust se mostra mais maduro e avança no contexto geral de sua obra "Em Busca do Tempo Perdido" deixando de lado as relações mais íntimas com sua família tratadas nos dois volumes iniciais. E, salvo as citações e observações com a sua avó, já praticamente no final da vida e até sua morte, quando dedica muitas páginas; se insere no contexto como adulto, como um dândi intelectual e escritor que sabe distinguir o dizer da aristocracia. 

  É sintomático esse amadurecimento do autor, no início se apresentado como apaixonando pela sra. de Guermantes a ponto de fazer vigia no "Feaubour de Saint Germain" para ao menos vê-la sair de casa e usar sua carruagem, o que também denota seu amadurecimento desligado da paternidade, independente,  até se sobrepor a essa paixão ao conhecê-la, igualando-se aos demais sem sobressaltos. 

  Quem espera por um desfecho final do 3º volume no "O Caminho de Guermantes", algo conclusivo, não encontrará. O autor não coloca um ponto final em sua narrativa e mostra que se trata de uma sequência na busca do tempo perdido e praticamente força os leitores a lerem o próximo volume "Sodoma e Gomorra" quando vai expor novos lances dessa aristocracia, a homossexualidade, tratada no início do século XX como inversão.

  Ler Proust, como disse acima, não é nada fácil. Só os apaixonados pela literatura e/os estudiosos o leem de ponta-a-ponta, mas este livrão (os 7 volumes consensados em três da Cia das Letras) segue como bem vendido na França e até mesmo no Brasil.