Colunistas / Literatura
Rosa de Lima

FLANANDO EM PARIS, p/ CARLINHOS OLIVEIRA, COMENTA ROSA DE LIMA

Andanças do cronista do JB pela capital francesas em vários períodos a partir de 1964 até inicio da década de 1980
08/10/2022 às 09:39
   O cronista José Carlos (Carlinhos) Oliveira marcou época em determinado momento da história do país escrevendo para o Jornal do Brasil, nas décadas de 1960 a 1980, quando o JB era um veículo da mídia impressa poderoso no Rio de Janeiro e em áreas urbanas do Brasil. Carlinhos era um rebelde sem causa, cronista de mão cheia da linha (quase) anarquista, sem engajamentos políticos com quem quer que seja, boêmio, "flâneur" - andarilho da noite carioca na zona Sul - de uma verve aguçada, refinada, sagaz, com mostras de uma intelectualidade acima da média entre os brasis.

  É autor de um clássico da vida carioca (O Homem da Varanda do Antonio's), um retrato da noite do Rio e sua intelectualidade da zona Sul (revolucionários de botequim) e do "O Rio é assim, a Crônica de uma cidade (1953/1984), ele que trabalhou no JB por 27 anos e morreu em 1985 vítima de uma pancreatite crônica incurável, Carlinhos era considerado um "enfant terrible", mas ao mesmo tempo adorado e admirado por todos. 

  Nosso comentário será sobre o livro organizado por Jason Tércio intitulado "Flanando em Paris" (Editora Civilização Brasileira, 431 páginas, 2005, à venda pela internet com preços variados entre R$21,00 e R$56,00) que retratam crônicas que escreveu em suas estadas em Paris, a primeira em 1964, antes do golpe militar no Brasil, permanecendo 3 meses; a segunda, em 1965 (mais 3 meses); a terceira 1975 (mais 3 meses); a quarta em 1979 para fazer exames quando foi diagnosticado com pancreatite; e a última, em 1981, de motivação mística.

  Em todos esses períodos conviveu com brasis que moravam em Paris, alguns mais conhecidos do que outros, como Ibrahim Sued, Di Cavalcanti e Cícero Dias; e outros menos como o fotógrafo Alécio Andrade, a condessa Pereira Carneiro (dona do JB), a jornalista Celina Luz e o médico Sérgio Carneiro, mas o que importa, na essência são suas impressões sobre a cidade e a maneira de sua gente viver. 

  E como um brasileiro "flâneur" (daí o título do livro), com sentimento critico aguçado, via tudo isso e a si mesmo, a sociedade brasileira perante o mundo (uma vez que Paris ainda era considerada a capital mundial da cultura), com narrativas em que conta, inclusive, o drama no enfrentamento à sua doença e as dificuldades de morar numa cidade com caráter mundial, com pouco dinheiro no bolso vivendo mal em conforto e instalações, porém convivendo nos bistrôs e pontos de cultura com afinco.

  Acrescente-se a tudo isso o fato de que não havia internet nem computadores nessas épocas, a comunicação era feita via Correios com textos digitados em máquina de escrever e a transmissão de boletos de pagamentos bem mais lentos do que nos dias atuais. 

  Mada disso, no entanto, retira do autor seu senso crítico sobre a sociedade mundial a partir de Paris. "Paris!Paris! Árvores esqueléticas, jeunes filles com gorros de astraça e longas botas negras, hemorragia nasal e a chuva incessante de ar cinzento! Veja o que a França faz com o nariz de quem a desafia" escreveu nos primeiros dias na cidade.

  O livro organizado por Jason Tércio tem 115 crônicas sobre Paris, 9 sobre Londres, 5 sobre Amsterdã e oito sobre Lisboa, lugares onde também esteve nesses périplos. 

  Nosso comentário, entretanto, se centralizará em Paris, nas suas andanças pela cidade e o que nos ofereceu sobre locais como Montparnasse, Trocadero, Montemartre, o humor francês, os bistrôs que frequentava, os porres que tomava e as bebidas prediletas, o local em que vivia e assim por diante. 
  Com tantos elementos à sua vista foi tecendo comentários dos mais ardilosos sobre tudo e todos, em especial, a si próprio, o que também representa uma visão que serve para milhares de outras pessoas imigrantes e nativos.

  Quando diz, por exemplo, que estava "alojado num segundo andar, tendo duas janelas que se abrem sobre a Rue de Vieux Colombier, a concierge tem pouco mais de quarenta anos e está um tanto gasta. É, contudo, profissionalmente simpática, e tem um par de olhos azuis bastante expressivos. A arrumadeira ainda está na casa dos trinta. É grande, robusta, ao falar mostra um dente solitário na arcada superior e há dias me surpreendeu com um lance do mais fino humor. Havia um buraco na minha pia. A água pingou a noite inteira sobre o tapete. Do tapete passou para o assoalho fabricando ali uma goteira que começou a cair, meticulosamente, sobre a cabeça de um cidadão que mora no primeiro andar. Este último, por delicadeza, passou a noite em claro deixando a reclamação para o dia seguinte".

  O que vocês leram acima são cenas típicas do cotidiano, aparentemente simples num contexto literário mais refinado, porém, que retratam uma realidade ou a realidade de uma cidade e de sua gente. 

  E é isso que o cronista Carlinhos Oliveira faz em todos os seus textos, observações pessoais, comentários sutis, análises do dia-a-dia e que ajudam os leitores a entenderem Paris. 

  Diríamos, nada diferente do Rio, onde vivia, ao citar uma arrumadeira ainda na casa dos trinta (anos) o que é comum nas cidades brasileiras de maior porte.

  Carlinhos, em certo sentido desmistifica, desde aquela época, o sentimento que as pessoas têm, de uma forma mais geral e abrangente, de que, quem vai morar em Paris leva uma boa vida "numa cidade maravilhosa e cheia de encantos mil", quando, na realidade, enfrenta problemas como os de qualquer outra cidade, desde que a pessoa não seja afortunada, como era o seu caso e da maioria dos brasileiros que moram na capital francesa.

  O livro, por conseguinte, também traduz o retrato de uma época dos anos 1960/1980, bem diferente dos dias atuais, embora contendo alguns traços e inteligência vigorando em casos isolados, bem parecidos. A cidade vive em movimento e é natural que o homem acompanhe essas mudanças. Nada, no entanto, é proibido. E se a pessoa ainda adota alguns procedimentos do passado devemos respeitá-los.

  "Nas ruas, Paris pertence aos outros: os parisienses legítimos desaparecem na multidão de alemães, africanos, vietnamitas e, enfim de todos os lugares possíveis e imagináveis", comenta Carlinhos na crônica "Nota Frívola", o que se assemelha aos dias atuais; e até mesmo a época da "Geração Perdida" (décadas de 1920/1940), quando Paris foi invadida por uma legião de estrangeiros. Carlinhos percebeu isso com poucos meses na cidade, tudo bem diferente do seu Rio de Janeiro, ainda muito brasileiro.

  Dei essas pinceladas em "Flanando em Paris" deixando aos leitores suas interpretações mais delimitadas dos textos, apenas dizendo que são emblemáticos, retrato de épocas, atitudes, moda, comportamento humano, tudo isso relado por um mestre da crônica, no final dos anos 1970 e início dos 1980 já bastante adoentado e sabendo que seu fim temporal estava próximo (morreu em 1985) descrevendo, inclusive, seu sofrimento (sem relatar, em si, o sofrimento para que alguém tivesse dó dele), suas angústias e seus temores.