Ao nos depararmos com a dura notícia da perda em matéria de Waldir Pires, muitas lembranças, sentimentos e provocações nos tomam como uma espécie de vendaval interno. Uma das que mais me tocou foi constatar que uma geração preciosíssima segue nos seus momentos últimos de desmaterialização. Falo de uma geração que ousou contemplar o Brasil com olhares criativos de artistas da política e, por isso mesmo, deparou-se com a perversão de uma ditadura de mais de 20 anos. Como não lembrar Milton Santos, Ana Montenegro, Paulo Freire, Darcy Ribeiro, Oscar Niemeyer, Plínio de Arruda Sampaio e tantas dessas pessoas que sonharam e deixaram um enorme legado de atitudes, olhares e formulações sobre um Brasil país/continente, que em realizando seus potenciais, pode indicar ao mundo os caminhos de ser muito, muito melhor?
Tive o prêmio de conviver politicamente por quatro longos-relâmpagos anos com Waldir, como sempre o chamei, na Câmara de Vereadores e, literalmente, ao seu lado sempre sentava na cadeira anexa à dele nas sessões. Pude atentar para lições, às vezes apenas desvendáveis dias, meses depois. Tenho certeza que muitas falarão nos ouvidos quando os desafios as convidarem. Por diversas vezes, nos falou sobre os potenciais, mas também a respeito dos riscos dos “parlamentos”. Do significado da democracia e, sobretudo, da indissociabilidade entre esta e a dignidade da pessoa humana. Certamente por isso, quando lhe fizemos o convite para participar da Comissão em Defesa da Criança e Adolescente, ao argumentar o quanto seria significativo alguém com a sua brilhante e longa trajetória, colocar-se na trincheira da proteção dos pequenos, ele nos respondeu enfaticamente: “Sim, vamos à defesa dos nossos jovens e crianças!”.
E defendeu mesmo. Quem conheceu Waldir sabe que suas palavras não costumavam se dissipar ao vento. Foi frequentador assíduo das reuniões, sessões especiais e audiências públicas. Em todas elas as atenções ficavam voltadas para ele, que as utilizava a bem do interesse público, sem vacilar. Atuava nos debates sobre a prioridade absoluta da criança e adolescente no Orçamento Municipal, passando pela contraposição às diversas violações de direitos, até a denúncia da política de extermínio da juventude negra. Sempre foram marcantes os posicionamentos de Waldir.
Aliás, a meninada - não me pergunte como - parece ter intuído isso. Lembro que já nos primeiros meses de 2013, início do mandato de vereador, quando ocorreu a explosão do movimento Passe Livre, a Câmara Municipal de Salvador foi ocupada pela estudantada. Em meio à euforia estridente daquela atitude de rebeldia, a desocupação só ocorreria quase 40 dias depois, Waldir subiu à tribuna para declarar seu apoio incondicional ao movimento. Era uma multidão de jovens e adolescentes, muitos entre 13 e 14 anos. Em meio à barulheira, Waldir inicia seu discurso. O silêncio foi se estabelecendo de uma forma tão impressionante que até hoje a pergunta está ar: Como aquela gurizada construiu um respeito que chegou a ser hipnótico por Waldir? Em outras palavras, como a admiração por ele desconhecia de tal forma fronteiras de geração?
Poderia discorrer aqui por mais inúmeros exemplos de ensinamentos nestes quatro anos, mas, dando um salto no tempo, podemos constatar que eles se realizaram até o último momento. Pedindo notícias a Carlos Alberto Mendes, muito amigo de Waldir, ele me contou há cerca de três semanas, que, em uma conversa entre os dois, Waldir, já com a saúde combalida e falando com dificuldade e com a serenidade de quem em pensamento contempla a sua própria história, disse-lhe: “Minha geração foi derrotada...” Alguns segundos de silêncio inquietante transcorreram. Então, ele pôs o dedo em riste e fez-se o firme Waldir de sempre: “Mas não podemos desistir!”.
Waldir Pires esteve presente neste e estará presente em outros Cortejos do 2 de Julho e em todas as lutas pela democracia e uma sociedade justa. Hoje, olhando para o Brasil, percebemos como, mais do que nunca, precisaremos de Waldir. Um Brasil que está sendo guiado por grupos que se limitam a organizar a pilhagem do seu território (onde as privatizações da Petrobrás e da Eletrobrás são apenas os exemplos mais visíveis) e a escravização do seu povo (pondo fim a toda legislação de proteção às trabalhadoras e trabalhadores).
Porém, o Brasil é dotado de uma riqueza subjetiva e material que lhe permite, uma vez orientado pela participação direta das multidões na política, fazer brotar florestas de criatividade e dignidade humana. Por tudo isso, vai em paz, mas fica em luta Waldir, pois para seguir a sua última lição - aquela de “jamais desistir” - precisaremos muito, muitíssimo de ti.
Hilton Coelho, vereador em Salvador pelo Psol