Direito

Leia carta Gilberto Gil a construtora Odebrecht sobre uso tripicalismo

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| 28/03/2012 às 23:00
  Como dificilmente a midia baiana vai publicar esta correspondência de Gilberto Gil para a direção da Odebrecht diante do fato desta empresa se utilizar do movimento tropicalista para vender um projeto imobiliário, em Salvador, vai ai na integra o apelo de Gil ao bom senso e a ética.

   CORRESPONDÊNCIA DE GIL
   A CONSTRUTORA ODEBRECHT 

"Rio de Janeiro, 5 de março de 2012

Atenção do Sr. Marcelo Odebrecht

Prezados Senhor,

Conforme já é do seu conhecimento, diante do farto noticiário por várias mídias, sua intenção em "homenagear" o movimento tropicalista e seus integrantes, mediante o batismo de um condomínio de prédios no Parque de Pituaçu, em Salvador, não foi bem recebida pelos artistas integrantes de dito movimento.

Acredito que as razões pela insatisfação de tal "homenagem" já tenham ficado bastante claras, especialmente pelas palavras de Caetano Veloso. Vossa construtora, empresa multinacional com quase 70 anos de atuação no País, e cuja Visão 2020, conforme estabelecida em seu site, é "alicerçada por um conjunto de concepções filosóficas" que incluem "a confiança no ser humano e na sua capacidade de se desenvolver pelo trabalho, a postura de humildade e a simplicidade valores pessoais alinhados com as concepções filosóficas da organização", está tomando para si, manu militare, toda uma obra criativa para, sob o manto de tecnicismos que não se sustentam, moral ou juridicamente, obter vantagens indevidas, que são absolutamente contrárias com V. propalada "concepção filosófica". Diante da presente situação, a "postura de humildade e a simplicidade de valores pessoais" estabelecida como norte empresarial da Odebrecht é absolutamente paradoxal.

Senhor Marcelo Odebrecht, V. empresa não precisa violar direitos alheios para bem suceder em algum empreendimento. V. Sa., através de V. advogados, vem informando ao público que "não há impedimento para o uso do nome Tropicália", referindo-se ao entendimento de V. jurisconsultos de que, por não ser Caetano, ou qualquer integrante do movimento tropicalista, detentor da marca "Tropicália" para a classe imobiliária, V. empresa está livre e desimpedida para fazer uso desse nome, da forma que melhor entender.

O que V. Sa. parece não entender é que não se trata, apenas, do uso de uma expressão cunhada por um movimento artístico criativo (cuja maternidade é inegável, seja do ponto-de-vista jurídico ou moral). O "Condomínio Tropicália" é formado por prédios com os nomes de Alegria, Divino e Maravilhoso, e sua divulgação faz referências viscerais e explícitas à obra de Caetano Veloso.

Tive acesso às telas iniciais do lançamento virtual desse empreendimento, e lá constavam, explicitamente, os nomes de Caetano Veloso e Tom Zé. V. advogados, certamente, o aconselharam a retirar essas referências do site de lançamento, como se suprimir os nomes dos artistas tivesse o condão de desvincular o objetivo da expressa alusão.

Fiz parte do movimento tropicalista, e tanto quanto meus amigos Caetano, Tom Zé, Rita Lee, e demais membros da Tropicália, além de César Oticica, representante do Projeto Oiticica, agradeço e dispenso a homenagem. Mais ainda, recuso a homenagem, por não entendê-la nesse sentido, e ratifico o pedido feito a V. Sa. de que reveja essa V. decisão e mude o nome do condomínio e de seus prédios.

As declarações emanadas de V. empresa, manifestando seu entendimento do que seja "direito" - que, evidentemente, não encontra guarida real - colide com o entendimento geral do que seja ético. Não está se discutindo "direito marcário". O movimento tropicalista foi um evento pancultural, mas a concentração da "homenagem" em torno de nomes de obras de Caetano, tem como propósito único enfatizar a baianidade do lançamento e, com isso, atingir o seu público-alvo. Na verdade, o que a Odebrecht busca, através da vinculação do empreendimento à imagem de Caetano Veloso, é um endosso, uma vinculação do que representa esse artista e sua obra aos potenciais compradores das unidades desse Condomínio, vinculação essa que afronta toda uma dimensão de propósito e de vida construída pelo artista em décadas de trabalho.

O senhor tem conhecimento de que os artistas "homenageados" se sentem aviltados com o uso de sua obra para batizar e caracterizar esse empreendimento. Ainda que na certeza de nada estar fazendo de errado, não lhe caberia outra ação, do ponto-de-vista ético, moral e honesto, rebatizar V. obra, atendendo aos diversos pleitos feitos por todos os que já lhe expuseram sua insatisfação. Não se trata de uma queda-de-braço, mas de uma situação de foro íntimo. Atender a essa solicitação não lhe fará - nem a sua empresa - mal algum, muito ao contrário. Se, alguma vez, a ideia de "homenagear" o movimento tropicalista e seus componentes foi, de fato, um sentimento real, essa é a hora de mostrar o respeito que respalda esse desejo da homenagem, e nos homenagear entendendo e acatando o desejo dos mesmos artistas que criaram as obras cujos nomes V. Sa. entende serem referências fortes, a ponto de usá-los num empreendimento de tal magnitude como é o Condomínio do Parque do Pituaçu.

Espero contar com V. compreensão e sabedoria no deslinde desse impasse, de forma a que não sejamos todos obrigados a contender em torno dessa questão.

Cordialmente,

Gilberto Gil"