Cultura

ROSA DE LIMA COMENTA MALCOLM X-VIDA DE REINVENÇÕES, DE MANNING MARABLE

Segundo o autor, “o Malcolm histórico, o homem com todas as suas virtudes e todos os seus defeitos, estava sendo estrangulado pela lenda emblemática construída à sua volta.
Rosa de Lima , Salvador | 17/05/2025 às 09:57
O mais completo livro sobre Malcolm X
Foto: BJÁ

  Existem centenas de livros sobre o personagem Malcom Little ativista negro norte-americano conhecido por Malcom X adepto da religião mulçumana e assassinado por membros da Nação Islã, de Elijah Muhammad, em fevereiro de 1965, em compadrio com o FBI então dirigido pelo lendário Edgar Hoover e relaxamento da Polícia de NY.

  Malcolm é considerado aos olhos contemporâneos como um dos mais importantes líderes do movimento negro dos EUA, se engajou no Pan-Africanismo criado por Sylvester Williams, onde também pontuaram W.E.B. Du Bois e Marcus Garvey personagens que influenciaram Malcom, o qual defendeu e difundiu a cultura de reparação da igualdade (brancos e negros) numa linha dente-por-dente, olho-por-olho, se possível com uso da violência para a afirmação de direitos.

   A trajetória de Malcom (1925/1965) em especial a partir do início dos anos 1940 quando se torna jovem e é empurrado pelas circunstâncias para o crime e também atua como gigolô e gay, o que resultou em sua prisão no ano de 1944, em Boston, por cinco anos após participar de assaltos em casas de brancos nos bairros nobres, ingressa na Nação Islã, ascende a posições de mando e se vê envolvido numa trama onde se misturaram ciúmes, poder, ambição e outros atributos. 

   Sua autobiografia escrita por Alex Palmer Haley publicada logo após sua morte foi um enorme sucesso de vendas com 6 milhões de exemplares na arrancada do lançamento, e surgiram, ademais, uma série de outras publicações sobre a essa personagem polemizada.

   Foi nessa enxurrada, não necessariamente entrando na onda para se beneficiar dela com um novo “best-seller”, que o historiador Manning Marable, nascido em Ohio, 1950, produziu o que é considerado, na atualidade, o mais completo e melhor livro sobre Malcom X, porque sendo trabalho de um historiador produzido com a participação de mais de uma centena de estudantes e professores de universidades, bem fundamento, cuidadosamente pesquisado em milhares de fontes, contém além de dados biográficos de Malcom uma análise crítica de todos os seus passos desde a época de delinquente juvenil as fases mais politizadas inclusive no confronto de pensamento e ações diante de outros líderes dos movimentos negros como Elija Muhammad, seu inicial protetor e mentor; e Martin Luther King Jr, líder de Atlanta, que defendia uma linha mais pacifista.

   Eis, pois, a diferença do livro de Manning para o de Alex Haley ou da filha de Malcolm Llvasah Shabazz autora de “Growing Up X: A Memoir by Daugther of Malcolm” em que narra sua infância e adolescência, com foco na influência do pai em seu crescimento. A autobiografia embora tivesse uma participação intensa do próprio Malcom e foi produzida nos momentos em que atuava, nem Haley; nem Malcolm enxergaram a dimensão do que estava acontecendo e os efeitos desse processo mais adiante. E minimizaram, creio, propositadamente, alguns pontos que pudessem manchar a sua imagem, entre eles, a sua relação distante com a esposa Betty com quem teve 4 filhas.

   Falemos então do livro de Manning Marable, Malcom X – uma vida de reinvenções (Companhia das Letras, 650 páginas, capa Retina 78, tradução de Berilo Vargas, 9ª impressão, 2024, Prêmio Pulitzer, 2012, R$65,00 nos portais) onde o autor anota propositadamente o termo “reinvenções” explicando no decorrer da obra que a vida familiar, religiosa e política do líder negro passou por várias mudanças nos campos pessoal e de sua relação com a esposa Betty e a paixão por uma outra mulher a qual vai ter um filho com Elijah e abala suas relações com o líder muçulmano; na própria religião como seguidor de Alah, o misericordiosa, adotando uma linha mais ortodoxa quando viaja para o Egito e Arabia Saudita; e na política com aprofundamento do seu pensamento na medida em que amadurece, sobretudo após a longa série de debates que realizou nas universidades.

   O livro de Manning está espelhado em 16 capítulos desde os primórdios (1925 a 1941) que o autor intitula “De pé raça poderosa”, a lenda de Detroit Red (1941-1946), quando se torna X (1946/1952); “Irmão, o ministro precisa casar” (1957-1959); “O ódio produzido pelo ódio” (1959-1961); “Tão certo como Deus fez as maçãs verdes” (1961-1962); “Dá oração ao protesto( (1962-1963); “Ele se desenvolvia rápido demais” (abril a novembro de 1963); “As galinhas voltam para o galinheiro” (1963-1964); “Uma revelação no haji” (março a maio de 1964”; “Deem um jeito em Malcolm X” (maio a junho de 1964); “Na luta pela dignidade” (julho a novembro e 1965); “Este homem merece morrer” (novembro de 1964 a fevereiro de 1965); “A morte chega na hora” (14-21 de fevereiro de 1965”; Vida depois da morte; epílogo reflexões sobre uma visão revolucionaria. 

   Trata-se, portanto, de uma obra realizada por muitas pessoas e coordenada por Manning. O historiador explica que, em 1988, ao dar um curso na Universidade de Ohio que incluía a “Autobiografia de Malcolm”, de Haley, como parte de leituras obrigatórias percebeu “inconsistências, erros e personagens fictícios em conflito com a verdadeira história”, bem como a falta de “seções analíticas”. E o que mais chamava a atenção – segundo o autor – “era a ausência de qualquer discussão detalhada sobre os dois grupos que Malcolm formou em 1964 – Mesquita Muçulmana e Organização para a Unidade Afro-Americana”.

   Ainda segundo o autor, “o Malcolm histórico, o homem com todas as suas virtudes e todos os seus defeitos, estava sendo estrangulado pela lenda emblemática construída à sua volta. Havia muitos motivos para isso. Inexplicavelmente, Betty Shabazz (esposa) e depois seus herdeiros – negou-se a colocar à disposição do público centenas de documentos de Malcolm X – cartas pessoais, fotografias, textos de discursos – que só foram liberados em 2008”.

   A missão de Manning era enorme. A Universidade de Columbia entrou nesse processo com apoio financeiro em 2001-2004 para o desenvolvimento de uma versão multimidia da Autobiografia e havia mais de 20 alunos de graduação e pós-graduação trabalhando no Projeto Malcom X, redigindo centenas de perfis e resumos de pessoas, instituições e grupos mencionados na Autobiografia. 

Desde 2008, o projeto foi coordenado por Garret Felber, pesquisador negro; e Kevin Loughram; e as primeiras versões do livro foram lidas por Ira Katznelson, Renate Grindenthal, Hishaam Aidi, Samuel Rubens e Billi Fletcher Jr e durante 18 meses seguintes o autor e o editor (Viking Penguim) se comunicaram quase diariamente na revisão e amplitude dos textos para que alcançasse o público mais vasto possível.

   Trabalho que envolveu, portanto, centenas de mãos, milhares de manuseios de documentos, inúmeras entrevistas, atuação da advogada Liza Devis, enfim, uma obra que demorou mais de duas décadas para ser produzida, publicada em 2010, mas, quando saiu, é considerado o produto mais importante da vida de Malcolm, da história dos movimentos negros nos Estados Unidos numa determinada época e todos os episódios do que aconteceu na vida real (e ainda acontece) com o surgimento dos Panteras Negras e a eleição de Barack Obama.

   O livro não enfoca esse aspecto em si. Observando-se, porém, sua amplitude, sua visão revolucionária permeia acontecimentos nos Estados Unidos até os dias atuas. Para Manning (o historiador sofria de doença crônica nos pulmões passou por transplante e faleceu em 2011), “Malcolm X tem status de ícone no panteão dos heróis americanos multiculturais. Mas na época de sua morte era amplamente vilipendiado e repudiado como demagogo irresponsável. Malcolm procurou deliberadamente ficar à margem, desafiando o governo dos EUA e as instituições americanas e isso teve um custo. () A animosidade de J. Edgar Hoover resultou em atos de escuta telefônica ilegal, vigilância e intervenções policiais que provavelmente foram além de qualquer coisa que Malcolm pudesse imaginar. () Não estava ciente da profunda hostilidade da Nação Islã, e que levou um grupo de funcionários em torno de Muhammad a advogar sua morte”.

    A obra de Manning contém detalhes de toda essa trajetória, os embates com Elijah Muhammad e seus tenentes e capitães dos templos, sua relação tumultuada com a irmã protetora financeira Ella Collins, as relações silenciosas e distantes com a esposa Betty, a distante criação das filhas dada as suas ocupações em tempo integral ao Islã e a causa dos negros, enfim, e como diz o historiador vivia em permanente reinvenção de sua vida. 

   No fulcro, no âmago da questão, “com sua linguagem poderosa inspirou os negros a se verem não como vítimas, mas como donos da capacidade de se transformarem e de transformarem sua vida”. O poeta Amiri Baraka, em 1965, proclamou: “A maior contribuição de Malcolm foi pregar a consciência negra ao homem negro. Agora só precisamos encontrar a carne de nossa criação espiritual”.

   Adiante, Stokley Carmichael, um dos mais importantes arquitetos do movimento “Black Power” (década de 1980) localizou a origem do seu desenvolvimento em Malcolm. Assim como, nas campanhas de Jesse Jackson (eleições presidenciais de 1984 e 1988) e na tentativa de Barack Obama (2008) a pregação de Malcolm estava presente quando previu que “o negro poderia, potencialmente, representar o equilíbrio de poder numa república branca dividida”.

    Manning Marable oferece aos leitores uma obra com análises e críticas (no sentido da dialética) profundas sobre todo esse ambiente caudaloso da vida norte-americana dos anos 1920/1965, dos movimentos negros em diferentes matizes, de centros de cultura que passavam por transformações no teatro, na música e nas artes cênicas, nos esportes (em especial no boxe) sobretudo o gueto de reverberação mundial o bairro negro do Harlem, NY, da visibilidade de Atlanta, na Geórgia, enfim, obra que gera filhotes em desdobramentos.