Cultura

ROMANCE "A PSICÓLOGA", TF, CAP 6: CANTIGA DE RODA E O VELOCÍPEDE

Vivemos num outro mundo, entre o real (que é o nosso) e do conto da carochinha (da mentira, da fantasia, que é o deles) e não nos assustamos quando vemos relatos na TV de tantos escândalos da roubalheira de milhões e bilhões.
Tasso Franco ,  Salvador | 06/05/2025 às 09:49
Cantiga de roda uma brincadeira do nosso povoado
Foto: Seramov

   Vocês podem achar estranho eu dar um depoimento desses nesse livro, um romance, aliás, nem sei se é isso mesmo, para mostrar ao mundo nossa realidade. 

  Ora, se estamos no século XXI onde existem tantas inovações, a inteligência artificial está sendo tão alardeada e usada, a alta tecnologia é o assunto mais comentado, a robótica, carros elétricos, veículos voadores, viagens espaciais até no turismo, nosso povoado não é exceção absoluta porque já temos celular, laptop, internet e televisão, mas vivemos ao Deus dará, sem médicos, sem hospitais, sem água potável, sem psicóloga, salvo, como agora, na época do crime da escola que apareceram promotores, delegados, políticos, advogados, os homens do governo.

  Não falo isso como queixa. Os lá de cima, do planalto central não se preocupam conosco, nem com outros viventes em Umbuzeiro, Escorrego, Tiruco e assemelhados. Somos os invisíveis do país, os relegados, os esquecidos. Portanto, queixas, protestos, de nada adiantam. Falo por falar, desabafar.

   Vivemos num outro mundo, entre o real (que é o nosso) e do conto da carochinha (da mentira, da fantasia, que é o deles) e não nos assustamos quando vemos relatos na TV de tantos escândalos da roubalheira de milhões e bilhões de reais e que não dão em nada.

   A TV toda hora mostra isso de um prende e solta inacreditável de ladrões do colarinho branco, da existência de mansões com não sei quantos quartos, do uso de carrões e iates importados, da ostentação de joias, que apenas confunde nossas cabeças porque aqui quando se prende um ladrão de galinhas ou alguém que furtou umas bolachas na Padaria de Sêo Badu vai para a cadeia da sede e mofa por lá.

  No planalto, as malas de dinheiro andam pra todos os lados, dinheiro é apreendido em cuecas e cofres embutidos em paredes, moeda estrangeira parece ter asas, são consumidos vinhos com garrafas que custam o dinheiro de uma das camas que fabricamos a nossa mais chique, a king, que demora 15 dias para ser feita, e que eles bebem na maior desfaçatez do mundo e a gente acha, aliás, temos convicção, que esse negócio de ter vergonha só existe pra nós, para os pobres, e que os ladrões do dinheiro público não estão nem ai para esse tipo de coisa, de moral, de bons costumes.

   Nosso diácono Clóvis sempre nos fala de uma citação bíblica em Romanos 22.19 da importância de nos dedicar uns aos outros em amor fraternal e nos fornece um papelzinho com os dizeres: “Prefiram dar honra uns aos outros do que a si próprio” e a gente fica assustada ao verificar no noticiário da televisão que os homens lá do planalto não cultivam nem prezam a honra e o cajado de Moisés não os atingem.

   E vou citar um outro versículo também muito exaltado por Dom Clovis, eu o chamo assim porque ele parece com um bispo de Roma, quando lembra Pedro 4.2 “Então, de agora em diante, vivam o resto de sua vida aqui na terra de acordo com a vontade de Deus e não se deixem dominar pelas paixões humanos”.

   É isso: a gente cultiva a honra e a vontade de Deus, mas a medida em que vou ficando mais velha, mais experiente, vendo as coisas desse mundo na vida real, no nosso dia a dia, uns querendo passar a rasteira nos outros, nosso povoado na trilha divisória entre dois estados com traficantes mal encarados viajando por nosso território fico angustiada, a descrença aumenta e a gente fica sem saber o que fazer.

   Com a vontade de Deus estou na Serra dos Cardeais desde quando nasci e desde muito jovem nunca tivemos nada em segurança, lazer, em diversão, na possibilidade de praticar um esporte, a natação que a gente tanto vê na televisão, o vôlei, o basquete, as corridas de atletismo. 

   Eu sou grande poderia jogar basquete, mas não tempos quadras, nem garrafões; nem garrafinhas, nem um braço de mar, nem um rio, nem lagoa, e nossas brincadeiras as meninas desde pequenas eram com bonecas de pano que fazíamos, praticávamos o baleô, jogo do macaquinho pulando quadrinhas e números, cantando cantigas de roda com as mamães, saltando cordas em movimento; e os meninos se divertiam nos babas e no jogos do ferrinho e dos piões.

   Ceio que aqui na Serra ninguém sabe nadar. Nenhuma casa tem piscina, não temos clube social nem esportivo. Se um dia acontecesse um novo dilúvio a gente morria tudo afogado. Eu e Roque, certa feita fomos a Aracaju para conhecer o mar e o rio. Quando chegamos na praia de Atalaia não tivemos coragem de entrar n’água com medo de morrermos afogado com aquele imenso marzão a nos engolir.
 
  O mar parecia um monstro a roncar e sentamos num bar para comer caranguejos quebrando as puãs com um pilãozinho. Foi a primeira vez que comi caranguejo e saboreei um peixe. Gostei bastante porque era diferente do que normalmente comemos: feijão, farinha, carne de boi ou de carneiro. 

  Quando eu era pequenina a filha de Sêo Dotinha que era o homem faz tudo no nosso povoado consertava relógios, óculos, desentupia carburadores de carros e outras artes apareceu na pracinha da Capela usando um velotrol e fiquei doida para ter um igual. 

  Cheguei em casa chorando e pedi a mãe para falar com pai pra comprar um daqueles para mim e quando mãe falou para ele pai foi comigo na pracinha para conhecer a novidade e aquilo, segundo me disse, era um velocípede e ele iria fazer um ferro.

   E produziu um com freio e coxim de couro, mas quando ficou pronto teve dificuldades em colocar as rodas e quem o salvou foi um amigo chamado Tonho Jusa que possuía uma borracharia na beira da entrada no entroncamento para Sergipe, na rua da Rodagem, e arranjou rodas de borrachas de carros de mão. Usei esse brinquedo muitos anos e foi uma revolução tecnológico no povoado.

   Fiquei muito orgulhosa de pai. Hoje, não se dá atenção a essas coisas. Não sei dizer se os meninos sabem o que é um velocípede, uma boneca de pano, um carrinho de madeira, uma cantiga de roda. Meu irmão Horário brincava com um carrinho de madeira puxado por um barbante e imitava um caminhão Chevrolet com a boca passando as marchas. 

   Hoje tá tudo mudado com as inovações, os plásticos, a internet, os jogos violentos e nós temos muito medo disso tanto que, quando acontece um caso desse com o presenciado na nossa escola única, a Dom Miguel, com morte de crianças a tiros, a gente fica sem entender nada, mas ao mesmo tempo com a pulga atrás da orelha e até numa encruzilhada porque os pais perderam esse controle dos filhos e a motivação pode ter sido essa rebeldia da internet.

   Há um lado bom, sem dúvida, da tecnologia e a gente usa isso na nossa marcenaria para se atualizar e para vender nossos produtos e a Net é, na atualidade, uma das nossas diversões. Roque adora os jogos de futebol e os filmes de faroeste que vê na televisão e também assistimos séries com nossa filha, desde Herry Potter a outras mais apimentadas em romantismo.

  É uma diversão que usufruímos com muito prazer porque não tivemos cinema e a TV comercial é limitada, embora a gente também vê muito os programas de televisão gratuitas o Faustão, o Ratinho, os sertanejos na TV Aparecida, novelas e filmes.

   Essa é a nossa vida no povoado, infelizmente, acrescida dessa morte das crianças, desse trauma coletivo que gerou e, no meu caso, pelos sonhos dessas cobras que atormentam meu juízo. No último sonho, a cobra virou uma flor e só fez crescer minha curiosidade.