Cultura

ROSA DE LIMA COMENTA AQUELE JEITO BAIANO DE SER BOÊMIO, OTTO FREITAS

Livro de crônicas do jornalista e escritor Otto Freitas, sobre boemia anos 1970/1980
Rosa de Lima , Salvador | 20/07/2021 às 11:10
Aquele jeito baiano de ser boêmio, editora P55
Foto: BJÁ
      Costumo dizer que os 'pedacinhos da vida' compõem a história dos lugares por onde circulamos e vamos deixando marcas, lembranças e sinais de nossas existencias. E é sempre agradável quando alguém reúne essas passagens num livro contando esses momentos que ficam registrados num mesmo espaço dividindo com outras pessoas esses saberes, os quais se tornam de um conhecimento público mais alargado. 

   É o que fez o jornalista Otto Freitas, 68 anos de idade, protagonista da boemia baiana dos anos 1970/1980, já nos seu finalzinho considerando a velha e clássica boemia dos anos 1950, num estado que passava por uma transformação profunda onde novos valores e a violência tomou conta das cidades e o politicamente correto virou uma nojeira. Naqueles momentos se podia chamar viado de viado e cantar a música nega do cabelo duro, sem sobressaltos, sem censura, sem cancelamentos.

   "Aquele jeito baiano de ser boêmio" (Editora P55, crônicas, 143 páginas, apoio Funceb, ilustrações de Elano Passos, prefácio de Paulo Bina, à venda pela internet) conta como era essa Bahia dos anos citados acima em cenas da boemia nos bares, boites, ruas, cidades, festas populares, abaixadinhos, luares, mares, terras do Sertão, da Chapada e do Recôncavo, com seus parceiros e personalidades desse universo onde a noite era sempre uma criança, os preconceitos não existiam, a violência muitos menos, e podia-se vadir à gosto. 

   Vamos pinçar um dos trechos do livro relacionado a crônica "O Paraíso é Suburbano" (Pág 69): - Antes da Avenida Suburbana só se chegava a esse paraíso de barco, de trem, ou fazendo um longo e demorado arrodeio pela antiga Estrada Velha do Aeroporto, precária, estreita e perigosa. As crianças gostavam do trem, curtiam a paisagem do caminho da estrada de ferro inaugurada em 1860. A aventura durava 20, 30 minutos, mais ou menos, da Estação da Calçada até Paripe".

    Texto simples, singelo, e que diz tudo. O tempero é adicional, o Boca de Galinha, a moqueca de aracanguira ao molho de camarão, no restaurante familiar de dona Nem. Ficar de bobeira em cima de uma laje curtindo a vista da Baía de Todos os Santos e tomando todas. No decorrer da pena, mestre que é na arte de escrever sem firulas, o que permite ao leitor acompanhar as peripécias boemias do livro sem precisar ter um curso de PhD, comum nos dias atuais dos letrados acadêmicos, dezenas de lugares são citados e personagens amigas do autor e jornalistas da velha guarda, tais como Pedro Bó, Cabeludo, Machado, Bunda Podre e outros.

     Um universo que os letrados chamam de 'mágico' e outras adjetivações rococós quando, na real, era a Bahia andante, normal da época, onde se podia atravessar a madrugada no Gereré ou nas dunas de Abaeté abraçado a um violão e um engradado de cerveja sem se preocupar com o dia seguinte e sabendo que, ao descer das dunas, cansado, baleado, seu fusca estava no mesmo local que deixara e com o toca-fitas no lugar. 

     Otto vai deliciando os leitores como na crônica "A Curva de Deus" - uma das melhores na minha ótica, embora cada qual que escolha a sua - onde diz que "todo mundo sabe que baiano sempre adorou a praia, até quando o tempo está nublado. Vai à praia como quem vai rezar na igreja. É bronze na areia, mergulho no mar, cerveja, acarajé, passarinha, caranguejo e peixe frito com vinagrete e farofa". E lembra do mar de Itapuã, da barraca de Perilo, da turma de Serginho Fala Caceta, Fefé, Aninha, Beguinha, Zé Raimundo, o local onde Deus criou o verão, "com a luminosidade magnífica que só a Bahia tem".

     Não vou contar mais passagens dessa boemia baiana sem hora para começar e muito menos para terminar, ainda mais se a trilha fosse terra-mar em direção a ilha de Itaparica, a Aratuba e outros sitios; ou mesmo terra rio na trilha do Paraguaçu às margens da cidade do Cachoeira; ou no opala azul do Cabeludo nas benhas do Sertão de Serrinha porque senão tiro o ganha pão do jornalista, hoje, mais dedicado à literatura do que à imprensa no seu enfadonho dia-a-dia, até para vocês adquirirem o livro.
 
    E, por posto, sendo ou não boêmio lê-lo tomando umas e outras. Nesta Bahia atual, metida a besta, onde as pessoas estão 'degustando vinho' o ideal é tomar uma gelada como nos velhos tempos, a beira mar, acarajé e passarinha fina chamuscada de molho.