Cultura

ITABUNA: O SUMIÇO DA CORUJA DO BAR DE PEDRÃO, por WALMIR ROSÁRIO

Walmir Rosário é radialista, jornalista e advogado
Walmir Rosário , Itabuna | 16/05/2021 às 19:30
A coruja do Pedrão
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   Pelo que se comentava – a boca miúda –, Pedrão (Pedro Ribeiro) teria desistido de manter o seu estabelecimento aberto no hoje Alto Beco do Fuxico, após ter perdido seu pássaro de estimação, que lhe acompanhava há mais de 20 anos. Era uma coruja supereducada, que não se intrometia na conversa dos clientes, embora prestassem atenção a tudo e a todos com a maior discrição. Uma amiga fiel de Pedrão.

  Além de servir à vasta clientela quase todos os tipos de bebidas, Pedrão também oferecia serviço de restaurante, considerado por servir uma das comidas mais deliciosas do centro da cidade, rivalizando, na parte de aves, com as galinhas ensopadas e a molho pardo do ABC da Noite, do Caboclo Alencar. Também era inigualável nas comidas de resistência, como rabadas, fatadas, mocotós, sarapatéis e sobe-e-desce.

  Bastava chegar no dia anterior ou logo cedo e sugerir a Pedrão que gostaria de comer o prato de sua predileção que ele se encaminhava à feira livre e adquiria todos os produtos necessários para o almoço ou jantar aprazado. Todos os dias, além da clientela de bebidas e tira-gostos, apareciam alguns senhores da alta sociedade para desfrutar das coisas boas da vida deixada por Deus para satisfazer os homens de boa vontade.

  Pedrão era um cozinheiro afamado – atualmente seria considerado um conceituado cheff de cozinha – e era procurado pela gente da alta sociedade para preparar a comida das farras com os amigos fora de casa. Aniversários, despedidas de homens solteiros, comemorações futebolísticas, pagamento de apostas entre os fortes comerciantes, fazendeiros e profissionais liberais tinham endereço certo: o bar de Pedrão.

  Mas eis que um dia, por volta das 11 da manhã, chega um cliente já em estado avançado de bebedeira e diz que voltaria logo mais com alguns amigos para beber e a comida de sua predileção: galinha a molho pardo. Pedrão questionou que não teria tempo suficiente ir à feira para comprar as galinhas vivas, matá-las e cozinhá-las a tempo de servir ao conhecido grupo.

  Irredutível, o exigente cliente diz que não aceita desculpas e se sentiria desmoralizado se não fosse servido no seu pedido predileto. Pedrão bota as mãos na cabeça sem saber que rumo tomar para atender ao cliente – nem tão frequentador –, mas que inspirava receios por falar alto, andar armado e ter fama de não ter medo de briga e ainda trocar tiros ao se sentir desfeiteado.

  E Pedrão corre para a feira e àquela hora não encontra uma galinha sequer, nem viva nem morta; passa em dois restaurantes de amigos para tentar que lhe cedam umas duas cabeças para atender a emergência e nada. Não conseguiria atender ao esbravejado cliente e por certo teria enormes e insolúveis problemas à frente. Enquanto caminhava de volta ao bar e restaurante, a cabeça girava em busca de um milagre.

  Como bom cozinheiro, se virou com o que tinha dentro de casa, pois como calculava, a turma deveria chegar no mais alto grau e seria fácil entretê-los com uma comida de sustança, bem temperada. Antes, eles deveriam beber um litro de whisky, uma caixa de cerveja, entre um prato e outro de tira-gostos dos mais diversos, preparados com o que tinha dentro de casa.

   E assim fez como o planejado: Lombo de porco de panela, passarinha assada, saboroso sarapatel, mocotó misturado a fatada com legumes, e carne do sol dois pelos bem assadinha. A cada pedido de bebida Pedrão pedia a Deus e todos os santos que o livrasse dos malfazejos e da raiva de seus clientes, sem querer nem pensar no resultado. Bastava olhar a cintura de cada um deles para ver um revólver pendurado.

   Eram filhos de coronéis do cacau e de boiadas, a exemplo do anfitrião da turma, filho de grande fazendeiro, com força política junto ao governador do Estado, pois era deputado eleito com um grande número de votos. A cada vez que saía da cozinha não queria nem pensar da hora de colocar a panela de galinha a molho pardo para aquele batalhão de gente. Para se livrar, a todo a hora renovava os pratos de feijão, arroz e carnes.

   Lá perto da boquinha da noite, eis que o cliente se levanta e pede a galinha a molho pardo que tinha encomendado, pois já passava de hora de irem para casa. Era visível o fastio e o sentimento de barriga cheia no rosto de cada um deles, bastante alegres e cansados pelo tamanho da farra. Após mais uns minutos de espera, surge Pedrão com uma pequena travessa com a tão solicitada galinha a molho pardo.

  Pedrão pede desculpara por não conseguir servi-los como sempre e cada qual come um pedaço da ave, arrematam com mais uma carne do sol de dois pelos, pedem a conta, pagam e vão embora. Tão logo deixam o estabelecimento, alguns vizinhos chegam para saber dos mais recentes acontecimentos e os motivos daquela farra em pleno dia semana.  Ainda nervoso, Pedrão pede desculpas e fecha o bar, alegando muito cansaço.

  No dia seguinte, os clientes notaram a falta da observadora coruja, pendurada na gaiola aberta, presa por uma corrente. A todos Pedrão dava uma desculpa qualquer, sendo a mais utilizada a impensada fuga do seu animal de estimação, anos e anos juntos. Pelo que os vizinhos deduziram, na falta da galinha que deveria ser cozida a molho pardo, Pedrão lançou mão da coruja, temeroso em não atender aos exigentes e valentes clientes.

  Muitos anos após, após uma farra na casa do pecuarista Rui Nunes – assíduo frequentador do Beco do Fuxico –, perguntei ao seu irmão mais velho, Paulo Nunes Filho, se seria verdade ele ter sido o responsável pelo sumiço da coruja de Pedrão. À época, já sem militar na área etílica, ele jurou não ser conhecedor de tal fato. Acredito que teria sido um esforço para esquecer os arroubos da juventude.

  Só que a coruja nunca mais apareceu e anos depois o bar de Pedrão deu lugar ao bar de Itiel, preenchendo uma irreparável e sentida lacuna que deu início ao repovoamento etílico do Alto Beco, ressentido da aposentadoria de Alcides Rodrigues Roma. Pelos meus conhecimentos no ramo, daqui pra frente cristão algum terá coragem para desfalcar o Alto Beco do Fuxico, dos bares Artigos para Beber e Confraria.