Cultura

OS REMÉDIOS E A HOSPITALIDADE NA “FARMÁCIA” DE DORTAS P WALMIR ROSÁRIO

*Radialista, jornalista e advogado
Walmir Rosário , Salvador | 29/01/2021 às 17:35
José Lins Andrade
Foto: DO AUTOR
  Bem na subida no Beco do Fuxico no cruzamento com o Calçadão da Rui Barbosa se estabelecia Dortas (José Lins Andrade) com seus serviços de beberagem e corretagem zoológica, mais conhecida como jogo de bicho. Em Dortas, o serviço era especializado em cachaça com folhas, todas com receituário e bula, a depender dos sintomas apresentados nos clientes, e cerveja bem gelada.

A clientela era bem variada, eclética como em todo o botequim que se preza. Uma casa com três portas, duas abertas e uma fechada (até a altura de três quartos), onde se localizava a única mesa. Ao lado da mesa e em cima do balcão um pequeno caixote com quatro litros de cachaça, dispostos estrategicamente. Em cada um dos quatro lados se repetiam quatro tipos da mais legítima cachaça com folha.

No caixote medicinal, Angico, Pra Tudo, Milome e Jatobá. Esse local – uma espécie de reservado – era destinado aos clientes da casa, gente que não perdia um dia sequer uma passadinha ao meio-dia e no fim da tarde. Era um ritual, beber uma para abrir o apetite antes do almoço e outras sem conta no final da tarde, a depender da disponibilidade e disposição do cliente.

Pelas duas portas entrávamos até um balcão comum, cuja utilidade seria delimitar o espaço dos clientes mais novos, pois os fiéis, useiros e vezeiros, se acomodavam onde queriam e podiam. No velho balcão, nenhuma mercadoria à venda, mas tinha muita serventia, pois guardavam alguns pertences e sacolas dos clientes, além de apoio de cinturas e braços da chamada turma do pé de balcão.

Do lado de dentro do balcão, uma geladeira comum, dessas de residência, um grande cofre, que na falta de dinheiro guardava as pules e os prêmios do jogo de bicho, e uma escrivaninha. Circulando nesse pequeno espaço, Dortas servia os fregueses do bar e do jogo de bicho, ao mesmo tempo em que dizia ser filho de Deus e solicitava que o incluíssem na rodada de cachaça a ser servida, por conta dos clientes, é claro.

E nesse clima fármaco etílico, uma cerveja de vez em quando, já que não era o carro-chefe de vendas. Às sextas-feiras e sábados, casa cheia, clientes de bota uma aí, toma aqui, bebe e paga se juntavam aos tradicionais pé de balcão e ocupantes da única mesa, que deveriam chegar mais cedo para encontrá-la vazia. E as rodadas iam descendo sem garçom para servir ou comanda para anotar.

Em cada grupo a rodada ficava por conta de um dos fregueses, que anunciavam: “Agora é por minha conta”! Se serviam e anotavam as doses na cabeça, para acerto final na saída, pois eram todos gente da casa. E a única preocupação de Dortas era prestar a atenção nos pedidos para incluir a sua dose na conta. De vez em quando, ele gritava alegremente: “Agora é por conta da casa!”.

E cada um dos fregueses tinha um itinerário a cumprir: uns passavam, bebiam sua dose e iam embora, outros já vinham de outros bares e um grupo vinha sentar praça até o fechamento. Entre uma cachaça e outra passavam a vida da cidade em revista com as últimas novidades, muitas das vezes com histórias que ainda seriam notícia nos próximos jornais, rádios e nas emissoras de TV. Eta povo bem informado.
Aos dias de sexta e sábado o expediente era mais alongado, com horas extras e algumas figuras próprias do dia. Um deles era o servidor público federal Nisvaldo Damasceno, que chegava sem pressa ou horário para retornar pra casa. Conversa vai, conversa vem, chegava a hora do momento cultural, no qual Damasceno e Dortas declamavam poesias de Gregório de Matos e Augusto dos Anjos, com direito a acompanhamento no violão.

Como botequim é – reconhecidamente – um local de cultura, motoristas, balconistas, contabilistas, advogados, bancários, serventuários da justiça, servidores públicos debatiam as mais diversas questões pendentes do Brasil. Ao final, nenhum caso ficava sem solução e todos deixavam – a contragosto – o bar dispostos a continuarem a conversa noutro boteco a caminho de casa.

Mesmo com a presença do enorme cofre no recinto, a clientela sequer o respeitava. Dissimuladamente, fazia de conta que não o via ou se conhecia a sua serventia apenas para guardar dinheiro. “Dortas, anota a minha despesa”, gritavam. Outros nem a esse trabalho se davam e anotavam – eles mesmos – a quantidade de doses de cachaça e cervejas em locais previamente demarcados.

Ao fim de cada semana, quinzena ou mês – a depender das datas em que recebiam o pagamento – chegavam, somavam suas contas e entregavam o dinheiro a Dortas, sem qualquer constrangimento. Eu mesmo, a cada cachaça bebida ou autorizada, colocava a mesma quantidade de tampilhas (tampa de cerveja) numa lata velha. Era só somar quantas estavam guardadas e pagar. As cervejas eram anotadas com riscos na folhinha.

Com o passar dos anos, a clientela foi desaparecendo, os mais velhos para o outro mundo (se é que existe), os mais novos para outros bares, substituídos por uma nova fauna da mesma qualidade. De repente, o velho Dortas resolve se despedir de vez dos clientes, deixando-os órfãos. Portas fechadas, saíram em busca de abrigo no bar de Batutinha, Caboclo Alencar ou no bar de Ithiel.

Hoje nos resta passar pela porta e nos assustarmos com uma loja de confecções, brinquedos, ou sapatos, a depender da época. Olhamos de cima a baixo, lançamos um olhar profundo para o interior e nos retiramos enfastiados. Não nos resta alternativa do que seguir em frente e buscar abrigo em outras paragens, de preferência no Beco do Fuxico, local talhado para o encontro da boemia.
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****Esta crônica faz parte do livro Crônica de Boteco, Um guia sem ordem