SALVADOR 469 ANOS: Fortaleza foi erguida em troca facões e anzóis (TF)

Tasso Franco
31/03/2018 às 10:37
  Estima-se que 600 homens integravam a esquadra de Thomé de Souza para fundar a cidade fortaleza de Salvador, a capital colonial do Brasil, em 1549, com investimentos da Coroa portuguesa da ordem de 1 milhão de cruzados (R$400 milhões de reais). Desse contingente sob o comando do mestre de pedraria Luis Dias, cargo equivalente a arquiteto, existiam apenas 72 profissionais aptos para esse mister entre eles 15 carpinteiros, 16 pedreiros, 9 ferreiros, 8 serradores, 8 telheiros, 6 caieiros, 5 cavoqueiros e 5 carvoeiros. 

   De fato, esse era o contingente de mão-de-obra especializada em construções civis e militares e que usaria tecnolgia rudimentar toda manual para erguer a fortaleza e suas primeiras edificações.

   Havia ainda 62 degredados esquálidos, sem qualificação profissional, que foram incorporados a gente de Dias como auxiliares dos artífices os quais, somente a partir de junho de 1549 receberam roupas para vestir, pois, viviam nus e não participaram da roçagem da área onde seria erguida a fortaleza que aconteceu em maio. Foram contemplados, então, por ordem do provedor, com os jórneas (manto largo, sem mangas), calcões, camisas e ceroulas. 

   Não foi à toa, portanto, que o rei Dom João III enviara uma carta a Diogo Álvares, o Caramuru, na missão precussora de Gramatão Teles, em 1548, solicitando que este ajudasse na construção da cidade com a mão de obra nativa tupinambá. E, de fato, não fosse essa ajuda, dificilmente Luis Dias teria cumprido sua missão em tão pouco espaço de tempo.

   Vale observar que os tupinambás eram um povo com cultura tão rudimentar que não usavam a roda, não tinham objetos de ouro e prata comos maias e os incas, do Perú e do México, desconheciam bois e cavalos, portanto,a derrubada de toros de madeira e sua colocação no canteiro das obras eram feitas como nas derrubadas do mastro na festa de São Sebastião de Olivença, Ilhéus, hoje, com as peças sendo carregadas nos ombros dos nativos. As pedras levadas para a obra eram conduzidas em armações de madeira e cipó - numa espécie de andor - e o barro idem.

   Embora alguns historiadores tenham dito que até o próprio governador Thomé de Souza pôs a mão na massa é improvável que isso tenha acontecido, assim como não participaram a leva dos mais de 100 burocratas ou letrados - ouvidores, escrivães, servidores da fazenda, etc - e os 132 combatentes em armas, 65 soldados, 32 espingardeiros, 22 bombardeiros, sete besteiros e seis trombetas que cuidavam da segurança. Ademais um contingente de homens trabalhava na manutenção das naus e caravelas já deslocadas para a Ribeira do Góis e que tinham outras missões. 

   A alternativa dada a Luis Dias foi exatamente usar os homens de Caramuru e contratar alguns tramos da paliçada que protegeria a cidade a empreteiros Pedro de Carvalhais e aos irmãos Belchior e Rui Gonçalves, os quais também usavam mão de obra nativa.

   Segundo o historiador Eduardo Bueno, as obras propriamente ditas começaram em maio de 1549 segundo consta no primeiro pagamento em escambo efetuado no dia 12 pelo tesoureiro de Rendas, Gonçalo Ferreira, constando de 22 foices, 4 enxadas, 6 machados, 24 machadinhas, 4 dúzias de espelhos, 13 dúzias de pentes, 42 tesouras e 9.120 anzóis material entregue aos nativos em troca das madeiras para o erguimento da paliçada em torno do local das obras para proteger operários e soldados de possíveis invasões do gentio.

   As muralhas começaram a ser construidas dentro da paliçada conforme liberação dos salários dos pedreiros, entre 750 e 1800 reis; e 1200 réis aos serradores. Todos os homens que vieram com Thomé de Souza, exceto os degredados, recebiam soldos mensais. Um marinheiro, por exemplo ganhava 900 réis. E, para se ter uma idéia desse valor uma dúzia de ovos em Lisboa custa 7 réis.

   O dinheiro tinha pouco valor na Colônia nesses primórdios porque havia pouco o que comprar, salvo alimentos e vinho. Posteriormente, já no governo Mém de Sá, os nativos foram autorizados a fazer uma feira livre fora dos muros da cidade, na parte Sul, onde trocavam suas mercadorias - frutas, verduras, animais mortos e vivos - tatus, pacas, papagaios, etc - por objetos. O dinheiro nesta época não tinha valor algum para eles. Mas valia muito para os colonos para a compra de alimentos, vinho e ferramentas que chegavam de Portugal pelos navios na rota Salvador-Lisboa.

   Segundo Eduardo Bueno em "A Coroa, a Cruz e a Espada" o material usado nas muralhas de Salvador - madeira, barro e pedra - foi fornecido pelos tupinambás e custou "32 machados, 48 foices, 11 enxadas, 51 dúzias de tesouras, 51 mil anzóis, 144 furadores, 49 podões e 14 dúzias de facas da Alemanha". Na conversão, um machado valia 200 réis e uma espada 450 réis.

   Os dois edificios principais instalados na cidade foram o Palácio do Governador, conhecido como casa de sua majestade, e a Casa da Câmara e Cadeia, ambos em taipa cobertos com palhas. A Casa da Câmara foi o primeiro com dois andares sobrado onde iria despachar o govrnador. Nascia, paralelamente, a Cidade Baixa , na "Praia" ou "Ribeira" com a construção da Casa dos Armazés e a Casa da Fazenda e Contos com materiais transportado por Afonso Rodriges, um dos genros de Caramuru. Em 1551, as edificações começaram a ser telhadas.

   Na cidade alta foram delineadas as oitos ruas da fortaleza, a mais importante delas, a Direita do Palácio. A cidade nasce nessa configuração com a cidade baixa sendo a área de negócios, do comércio ultramarino, pois o mar era a única via de acesso a Salvador; e a cidade alta onde se instalou a força militar e a burocracia.

   **** Na próxima crônica vamos falar como a Rua Direita do Palácio se transformou na Rua Chile, um dos absurdos existentes em Salvador.