Do que vi num estado islâmico no ano de 2012

FERNANDO CONCEIÇÃO
30/08/2017 às 10:28
FAZ TEMPO TENHO COMIGO o exemplar bilíngue – árabe/português – do Corão. Ou Alcorão. Ganhei de graça, via correios, às expensas do organismo de propagação internacional do islamismo do Reino Saudita.

Estávamos na China no final de junho de 2012, rumo ao continente europeu. Cogitamos duas opções para chegar a Istambul, Turquia: fazer uma escala e conhecer por alguns dias ou a Índia ou o Iran.

Brasil já tem muita desgraça e desigualdades sociais monstruosas, como na milenar civilização de castas indiana. Melhor ir a Tehran, centro da rica cultura do império persa.

À época, 2012, Israel, sem apoio formal dos Estados Unidos da América, ameaçava um ataque surpresa em represália ao programa de desenvolvimento da bomba nuclear iraniana. O clima era tenso.

Partimos de manhã num vôo da companhia aérea chinesa do aeroporto de Beijing rumo a Tehran. Onde à noite chegamos.
Dentro do jato minha consorte trocou de roupa, vestindo-se à maneira islâmica, como previamente nos recomendaram. No caso do homem, camisas em mangas compridas e calças idem.


Em 1979 o Iran tinha feito uma revolução popular comandada de fora pelo aiatolá Ruhollah Khomeini, transformando-se em república islâmica teocrática.

Desde então os Estados Unidos, com apoio da Europa, impuseram severas sanções ao país. Bloquearam todo tipo de transações e relações com a chamada comunidade internacional.

Majoritariamente de maioria xiita, sua sociedade difere da porção majoritária dos países que compõem o Oriente Médio, como a Arábia Saudita e os Emirados Árabes, majoritariamente do ramo sunita e árabe.

O Iran que encontramos em 2012, em particular sua capital, se nos afigurava um país equilibrado, política e socialmente falando. Ainda mais se considerarmos as dificuldades geradas pelo bloqueio econômico anglo-europeu.

Basta dizer que nenhum banco do país estava dentro do sistema financeiro internacional. Não havia mercado de dólar, de euro ou de cartão de crédito.
Das grandes potências, somente a China fazia negócios com o país, tirando vantagens disso. Principalmente no tocante ao preço do petróleo – de que é grande produtor -, cujo valor podia ditar. Para contornar a escassez de produtos essenciais e alimentar sua população, o governo iraniano tinha de ceder.


Com Samy Adghirni no museu que foi palácio do tirano Reza Pahlavi

Por cinco dias, com apoio do jornalista Samy Adghirni, então correspondente do jornal Folha de S. Paulo, permanecemos no país, percorrendo ruas, mercados, pontos históricos, museus e monumentos.

Música em local público é proibido, assim como cães, que na cultura islâmica é um animal sujo.

Casais são desestimulados a andar lado a lado ou se tocarem. A “Polícia moral”, com agentes nas esquinas, vigia os infratores. Quem for surpreendido é detido, levado a uma delegacia e pode ser apenado.

É proibido ouvir e emitir  música em locais públicos. Venda de bebida alcoólica, ou seu consumo, dá cana e castigos.

Traficantes de drogas são enforcados em cerimônias públicas nas praças, dependurados por cordas em guindastes.
Ônibus que circulam são divididos ao meio em duas partes, por grades de ferro: homens são transportados na metade da frente e pagam quando entram; as mulheres na de traz. Sem cobradores, as mulheres descem no ponto, o motorista (que bem pode também ser uma mulher) salta de sua cadeira, vai para fora do veículo e recebe a tarifa.

Foi Adghirni que nos indicou o único hotel em toda a Tehran que aceitava cartão de crédito internacional, mediante o pagamento extra de um pedágio. Luxuoso, em sua cobertura da qual se vislumbra ao horizonte a cordilheira de montanhas que envolve Tehran, fomos os três agraciados pela gerência com um lauto jantar de despedida: versátil, saudável e saborosa culinária iraniana!

No hotel também pudemos trocar euros pela moeda nacional, o Rial. Que, aliás, opera em dois níveis de troca.

Iran era o país que mais acolhia famílias de refugiados afegãos. Que cruzavam as fronteiras para se livrar do odioso projeto de poder do Taleban, baseado em interpretações extremadas dos ensinamentos do Alcorão.

Adghirni, sunita não praticante, fez questão de nos instruir sobre alguns mitos. Um deles, o da obediência religiosa. De fato um dos problemas dos aiatolás é reforçar a religiosidade, ante uma milenar sociedade cultivadora das ciências e das artes, como é a de origem persa.

Constatamos: em Tehran as mesquitas estão mais vazias do que era de se esperar. Assim como, diferentemente do registrado em Istambul, não ocorre com a frequência periódica a emissão dos cânticos do Corão nos autofalantes dos templos que se espalham pelas cidades muçulmanas.

Outro mito: o da suposta repressão sexual da mulher vivendo sob o regime teocrático iraniano. Segundo Adghirni, há controvérsia. No privado, as mulheres são tão liberais quanto as liberais do Ocidente.

Evidente que o olhar ocidental não alcança a profundidade das teologias e filosofias islâmicas, a complexidade de sua cultura da qual os ocidentais herdamos tanto nos mais variados campos do conhecimento.

O Corão nos ensina ser a mulher um templo sagrado. Não pode ser profanado. Sequer vislumbrado pelo olhar lascivo do pecador. Daí, melhor protegê-lo, sem nunca deixar à mostra pública quaisquer das suas partes, muito menos suas linhas curvilíneas.

É um templo sagrado a mulher por desdobrar-se dela, exclusivamente dela, a fonte da vida que gera o ser humano.

Numa das principais mesquitas de Tehran, para adentrar visitantes recebem manto para se cobrir

Sobre a qual é menor a participação do homem. Mais bendita é se fecundada, o que fará com que seu companheiro pelo tempo necessário não viole o seu ventre. Uma das simplórias explicações para a poligamia masculina…

A leitura corânica induz a variadas interpretações. Em verdade a palavra de Alah sequer pode ser traduzida do árabe. Ou mesmo dita, pronunciada – a não ser cantada, como música.

O Iran é reflexo desse anátema, num mundo laicizado sob forte conteúdo judaico-cristão.