Comentário sobre o filme “Daughters Of The Dust”

Sérgio São Bernardo
16/06/2017 às 11:56
Próximo à costa norte da Carolina do Sul, na América do Norte, aquela cultura que muito se parece com o que vivemos na costa sul da América do Sul, vivem as comunidades Gullah. Em uma das ilhas marítimas, chamada Dataw, vivem “As Filhas da Poeira”. 

  Seus ídolos e imagens, vivas e mortas, adormecem no grande rio! Nos idos de 1902, três gerações de negras mulheres nos ensinam, pela voz, sobre quem vai nascer para os vivos da terra e os vivos de todo o céu. No filme, as cenas parecem se repetir como na vida. Dizem que é preciso evitar o fluxo migratório para o norte. 

   O ambiente é de uma brancura tão negra quanto as cores dos corpos dos personagens. Aqueles camarões com quiabos! Aquela música cantada como se a espiritualidade mística fosse mais profunda do que a aparente lição muçulmana e cristã de viver nas nuvens brancas que se confundem com os longos vestidos que vestem!

   A trama persegue o sentido da ancestralidade e da dúvida sobre o que virá! Um inadiável futuro os espera no continente. O filme é denunciador de tantos mistérios que não cabem em livros e memórias! Os valores dos Gullah são flexíveis e firmes ao tempo, como se vivessem num mundo próprio para continuarem vivos! Isso exige uma imortalidade da alma guardada por tempos e lugares! 

  Só os seus estranhos hábitos vencem a impermanência do tempo de poeira que deslizam nas distintas roupas brancas que cobrem todos os seus corpos! Este é o tema dos negros que vieram para a América: As lembranças e costumes que dilaceram os grandes cachos que ornamentam cabeças de homens e mulheres das Ilhas Gullah. Essa autêntica narrativa é tão real e sincera quanto os modos de resolverem seus conflitos. 

   Tudo é restauração e reconciliação para as negras e negros das ilhas marítimas do Sul. A insistência é a de que o tempo e a voz, que não falam tudo, valham mais que papel pintado para resolver demandas de justiça!

   A sensação de namorar o tempo entorpece um ar de inveja para quem vê e tédio para quem vive, e vice-versa. Quem vai, quem fica, já não interessa. Quem foi para o mundo do Norte não está feliz e quem ficou não está triste. Mas ir é o que esperam frente à expectativa do que sempre vem! Este mundo de mulheres e homens que vieram dos Igbos da África Ocidental refizeram parte do que é América do Norte hoje! Cora Lee Day é uma deusa da lama da ilha de tantas tranças e fios! "O antepassado e o útero são um e o mesmo". 

   Nana é a morta viva que controla o que foi e o que será! Viola sabe do duplo, mas quer conquistar uma nova era para seu povo! Que magnífica Cherry Lynn Bruce! A Filadélfia e o seu fotógrafo não sabem mais que as fotos que refletem belezas opacas! E aquela Mary Peazant, hein? Sabendo dialogar por entre mundos sem a moral de um e de outro.Tão bela está Bárbara-O e a sua amante, a enigmática Trula! Que mistério substancioso o de Trula Hoosier! 

   A prostituição, o estupro, os desejos, a traição e o linchamento são da ordem do silêncio que grita abertamente! Alva Rogers interpreta uma Eula, Ewa de sentença e barriga fortes! Leva no ventre a contadora dessa história que oras é a matriarca oras é a voz lírica e profética de Kai-Linn Warren, que só nasce no final do filme! Eli, o marido, não suporta mais que a dor da luta que trava com seus irmãos. 

  Ah, aquela luta coreografada com os dedos e com golpes de surpresa histérica lembra o jogo de tantas perguntas e tantas respostas que usamos através do corpo para inquirir e desvendar o que não sabemos lidar! Iona decide pelo amor e pela coragem e fica no passado segurando o desatino da viagem de toda família. 

  Que poderosa esta Bahni Turpin que permanece ao final, na ilha, com seu Cherokee.

   O mundo árabe se revela como um mundo também estranho para eles. Só o branco predomina por entre águas e céus nublados e cinza que confundem com a mágica sagrada da ancestralidade que parece mais fortes que a religião fundada! Bilal (Umar Abdurrahman) um griot da jihad sabe que nada pode ficar impune. 

   Compreende que a memória e o luto carregam o dom da vingança! Naquele misto de dança de mundo e dança de morte, elas dançam e jogam como se a vida fosse sempre um ritual que merece ser celebrada! Julie Dash, a diretora, percorre caminhos estreitos da iluminura do ser para fazer um filme densamente sútil e melancolicamente belo! Antes de mais nada, o filme, é um poema de como lembranças se instalam em nossos corpos e como temos modos distintos de conviver com estas marcas! Esse futuro reserva esperanças e rupturas! 

  Nanã Peazant não deixará que nada aconteça sem fios que se liguem! Por isso, antes da partida, põe uma mecha de seu cabelo por sobre a Bíblia que anuncia uma fé mitigada dos cristãos da ilha!

   Agora, depois de tanto tempo - 26 anos - precisou uma Netflix trazer para nossos olhos, amarrotados de coisas rasas, uma ficção super-real e multilinear como gostamos que seja a vida para nós dos trópicos de baixo! O filme Daughters Of The Dust, de Julie Dash, 1991, falado na língua local (geechee), com fotografia de Arthur Jafa, produção independente, é um filme que merece ser sentido!