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Rosa de Lima

ROSA DE LIMA ANALISA "ENSAIO SOBRE A INDEPENDÊNCIA”, XAVIER MARQUES

O ensaio polêmico de Xavier Marques com análise relevante dos acontecimentos que levaram ao conflito baiano de 1822 e 1823
08/12/2023 às 09:53
O projeto ALBA Cultural lançou recentemente uma coleção de 7 livros comemorativa dos 200 da Independência da Bahia do jugo português também chamada de "Guerra do Madeira" iremos comenta - cada um deles - em determinado momento e na medida em que formos lendo-os. 

É uma coleção valiosa e escrita por renomados autores com análises de movimentos políticos desencadeadas na Corte portuguesa a partir de sua mudança para o Brasi (1808) escorraçada de Portugal pelos franceses de Napoleão Bonaparte, e os anos que se seguiram até a Revolta Constitucionalista do Porto (1821), o retorno do rei à Lisboa e os acontecimentos nativistas no Brasil.

Pelo visto nos três volumes já lidos cujos títulos  são: "Escritos sobre o 2 de Julho" - Claudio Oliveira, Daniel Duarte e Pierre Malbouisson ; "As Façanhas de João das Botas", de Lucas Alexandre Boiteux; e "Ensaio Histórico sobre a Independência", de Xavier Marques, há muitas loas aos fatos e a gente fica sem entender o que é ficção e o que é realidade, a ponto de se dizer, num desses livros de forma peremptória que Maria Quitéria lutou na batalha de Pirajá, em 22 de novembro de 1822, quando o batalhão em que ela se alistou , o “Periquitos” participou da contenda como tropa de defesa estacionado no Recôncavo.

   Vamos, então, por parte, analisar primeiro o "Ensaio Histórico sobre a Independência", 119 páginas, escrito em 1924, por Francisco Xavier Marques para as comemorações do centenário da independência. Membro da Academia Brasileira de Letras, Itaparicano de nascimento e deputado federal na época do escrito, o melhor do livro de Marques está na análise que faz sobre o sentimento nativista e emancipacionista existente na Bahia e nas províncias do Norte, especialmente em Pernambuco com a revolta de 1817, embora nenhum deles tenha conseguido uma rutura com as metrópoles de Lisboa e Rio de Janeiro.
  Essas revoltas, especialmente a Conjuração Bahiana, esta último bem anterior, de 1798, influenciada pelo ideário da Revolução Francesa, e a Revolução Constitucionalista de 10 de fevereiro de 1821, tendo à frente de um regimento de artilharia o brasileiro tenente-coronel Manoel Pedro de Freitas Guimarães, ajudaram a sedimentar o nativismo que resultou no conflito armado da Bahia, o mais longo da história do Brasil no que diz respeito a independência de Portugal, exatos 17 meses, entre fevereiro de 1822 (data da invasão do Forte de São Pedro) a 2 de julho de 1823; e/ou 12 meses considerando o 25 de junho de 1822 (data em que a Câmara de Cachoeira aclama o príncipe regente Dom Pedro como imperador do Brasil e o comandante português em armas na Bahia manda uma canhoneira bombardear a cidade) a 2 de Julho de 1823.

  A esse fato, que historiadores diversos consideram relevante, Xavier Marques dá pouco atenção ou nenhuma, na medida em que foi a partir desse momento que se estabeleceu uma junta governativa da Bahia nativista e constituída majoritariamente por brasileiros e que apoiava o príncipe regente, com sede em Cachoeira; em contraponto uma outra junta, a original, com sede em Salvador, onde funcionava a Câmara do Senado, adepta da Corte de Lisboa, mas, nem tanto, e onde atuava o comandante das armas portuguesas, o brigadeiro Ignácio Madeira de Melo.

Diz Marques: “O esforço que custou a Bahia o reconhecimento do governo do príncipe, a quem se dirigiu pelo órgão da nova junta eleita a 1º de fevereiro de 1822, em Salvador, composta por brasileiros, pode calcular-se pelo assanho da tirania que a vinha ensanguentando. Drummond que lá esteve deixou testemunho de como para ali convergia toda a atividade da metrópole, afanada em recolonizar o reino do Brasil”.

A província, escreveu ele, “se achava quase toda revoltada contra a dominação portuguesa, e daquelas partes que ainda não se sabia chegava todos os dias à cidade noticia da revolta e das separações”. E aí, vem a citação de Cachoeira: “A junta de defesa já constituída no Recôncavo, faltavam todos os recursos que a pusessem em estado de poder vir atacar e expulsar os portugueses da Bahia”. 

Nesse aspecto, Drummond tinha parcialmente razão (dizemos nós) e o conflito se estendeu não com lutas (batalhas) e sim numa guerra de cerco. Marques comenta que “o brigadeiro Madeira de Melo continuava a acumular elementos de resistência e combate. “Não lhes regateava o Congresso de Lisboa, firme no propósito de anular o governo do príncipe e fazer da Bahia o centro de reação para dominar todo o Brasil”. 
A afirmação tem um sentimento parcial de veracidade, pois, Madeira se queixava da falta de um apoio mais vigoroso da Corte. Até hoje há dúvidas se Dom João VI tinha vontade mesmo de destronar seu filho e príncipe, naturalmente levando-o livre ou preso para Lisboa, ou se desejava que fossem estabelecidos dois reinos Brasil e Portugal, ainda que, se separados, o do Brasil seguisse os postulados da Corte de Lisboa. Seria, assim, um reino amigo, filial.

Adiante, diz Xavier Marques: “De novembro de 1822 a fevereiro de 1823 as suas forças de terra (de Madeira), dizimadas em combate e em virtude de deserções, baixaram de 8,621 a 8.073 homens. Em abril, (1823) porém, com o reforço chegado da Europa, calcula Rio Branco que ele teria às suas ordens nove a dez mil homens de tropas regulares. A esquadra montada portuguesas com as expedições de agosto e abril compunha de quinze vazos, montando 438 canhões”.

Bem, não se sabe onde Marques retirou essa informação de “forças de terras dizimadas”. Na única batalha que houve na guerra, a de Pirajá, estima-se que, dos dois lados morreram entre 80 a 180 homens, mas, até esses dados nunca foram devidamente comprovados. Ora, Marques aponta 548 mortes e deserções só no lado português. O que, seguramente, não existiu.

O historiador Luís Henrique Dias Tavares no ensaio “Participação da Bahia na Luta pela Independência” sobre este combate cita Wanderley de Pinho: “Com a vitória em Pirajá, ‘o cerco terrestre se consolida’, as forças brasileiras distribuídas de Cabrito a Conceição e de Itapuã a Brotas. Não se trata, portanto, de contar os mortos e feridos, parar retirar dessa pilha a importância histórica do combate de 8 de novembro nos ‘cerros da Bahia’ como dizia Castro Alves na Ode ao 2 de Julho. Mas, isto sim! No que representou a tática geral da guerra, consolidando o certo da cidade do Salvador e frustrando a estratégia militar portuguesa que cogitava estabelecer uma retaguarda segura para, em seguida, bloquear a Baía de Guanabara e atacar o Rio de Janeiro”.

Tavares, pois, fala em vitória em Pirajá e na consolidação do cerco. O que significa dizer que, a vitória brasileira foi de posicionamento estratégico em Pirajá, sem, contudo, haver um avanço em direção ao centro de Salvador para expulsar Madeira. Estamos falando, pois, de 8 de novembro de 1822; e Madeira só deixa a Bahia em 2 de julho de 1823, portanto 8 meses depois.

   Voltemos a Francisco Xavier Marques, o qual exagera nas tintas ao afirmar que o exército brasileiro somava entre 10.000/12.000 homens, entre a tropa regular comandada pelo general Labatut e os batalhões de voluntários, além de 700 homens embarcados e comandados por João das Bottas, em Itaparica, e mais 2.500 entrincheirados na ilha; bem como Madeira teria às suas ordens “entre 9.000 a 10.000 homens de tropas regulares” e uma esquadra com 15 vasos de guerra. Montando 438 canhões, algo em torno de 1.500 a 2.500 navais, esses números avantajados não condizem com a realidade. 

   Ora, com um conflito que durou tanto tempo, mesmo considerando a chegada do Exército Pacificador de Labatut, em outubro de 1822, este com algo em torno de 2.000 homens, seria, praticamente impossível, manter uma tropa desse tamanho, tanto do lado de Madeira; como de Labatut e voluntários abastecida de comida, água, munição e armas. Estamos falando de 1822 e é real informação de que os donos de engenhos e a população mestiça e negra alforriada se organizou em batalhões voluntários, mas, os dados sobre os quantitativos são imprecisos.

  Quando Marques cita que o “Bellona” era composto por 400 voluntários e comandado por Inácio Pitombo; o “Mavorte”, de 300 voluntários, comando de Veríssimo Cassiano de Souza; o Batalhão de Santo Amaro, 500 praças; batalhão de Antonio Berenguer 400 voluntários; Caçadores de Manoel Pitanga, 600 homens; um esquadrão de Itapicuru com 500 praças; batalhão de Braz Baltazar 300 praças; batalhão de Luis Oliveira 300 praças; 600 voluntários descidos de Itapirucu; batalhão de Bento Lopes 600 voluntários; esquadrão de cavalaria com 400 homens de Carvalho e Albuquerque; batalhão de Saubara 400 praças; 710 embarcados na flotilha de Itaparica e mais 2.500 em terra na costa de ilha”.

Adiante, confessa: “Em outubro de 1822, o Conselho Interino do governo da Provincia com sede em Cachoeira, oficiando ao príncipe regente, dizia precisar apenas de um chefe para o Exército da Provincia, não o tendo nomeado por saber da chegada a Maceió do general Labatut, despachado do Rio, em julho (1822) para comandar todas as forças. ‘Já teríamos batido às portas da cidade e expulsado o inimigo se não esperássemos o sobredito general”.

Labatut só chegou a Bahia – a partir de Maceió – em outubro e foi ele que comandou o Exército Libertador na única batalha da guerra a de Pirajá, apenas 1 dias, em 9 de novembro, usando basicamente as forças regulares do Batalhão do Imperador 800 homens e mais 700 homens dos batalhões da Paraíba e de Pernambuco. Labatut, no entanto, após a discutível vitória (Madeira também apregoava que venceu) não avançou sobre a capital. Ocupou posições estratégicas em Pirajá e Cabrito e aí ficou. 

Marques arremata: “Porque, parece supérfluo dizê-lo, mas não é – a campanha politica da nossa emancipação acabou transmutada em renhida campanha militar. Não há muito, o ilustre presidente do Instituto Histórico Brasileiro considerava, como de agora, não fora de propósito esta superfluidade, lembrando que há um século na terra de Cairú e Montezuma, de Abrantes, de Argolo, Ribeiro e Vasconcelos, de Siqueira Bulcão e dos Carvalhos e Albuquerques: “Houve no Brasil verdadeira guerra da independência , com todos os episódios das campanhas militares e notáveis feitos de armas, quer em vários pontos do território pátrio, quer no mar...o 2 de julho rematou condignamente magníficas séries de vitórias terrestres e marítimas, quais as mais assinaladas do Novo Mundo”.

Salvo em Pirajá, desconhece-se na história real, quais foram, de fatos ‘essas magnificas séries de vitórias terrestres e marítimas”. No dia 2 de Julho, Madeira de Melo e suas tropas, além de portugueses comerciantes e outros, retornaram a Portugal cm 84 navios. 
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No posfácio desta edição há uma crítica pertinente a obra citada de Xavier Marques escrita por Pierre S.P. Malbouisson, graduado em história e analista legislativo do Departamento de Pesquisa da ALBA, na qual ele situa que a “visão apresentada por Marques esteve imersa numa concepção de evolucionismo social característica de muitos homens letrados de sua época, que inclusive conceberam projetos de “país” para o Brasil, assim como ajudaram a construir a memória histórica nos seus respectivos estados () ...assim, em que pese pessoas indígenas e negras tenham participado ativamente do processo de independência do Brasil na Bahia – basta lembrar o contingente mobilizado na Casa da Torre que incluía arqueiros indígenas, e uma quantidade de homens negros no batalhão dos voluntários do príncipe – o seu lugar na narrativa de Marques é inexistente”.

 Para Malbouisson, “pensar a luta da independência nos coloca em uma posição de refletir não apenas sobre os eventos factuais, ou mesmo nas suas versões consolidadas no imaginário histórico. Marques ao escrever o seu ensaio no calor do centenário do 2 de julho, se coloca como parte de um projeto vislumbrado pela elite intelectual baiana de afirmar a importância do estado ante o cenário nacional (Oliveira, 2013)”. 

- Quase cem anos após a publicação do seu ensaio a às vésperas do bicentenário da independência do Brasil na Bahia, as reflexões que nos cercam são outras, assim como as leituras que fazemos sobre o mesmo processo ()...Voltar ao texto de Xavier Marques nos impõe a tarefa crítica de olhar o passado com responsabilidade e consciência de que almejamos para nossa própria sociedade”, conclui Malbouisson.

É correto o que conceitua Malbouisson sobre a participação de vários segmentos da sociedade nas lutas pela independência sobretudo em relação aos negros e mestiços, numa época em que a escravatura era vigente, e também sobre a participação dos tupinambás e das mulheres, mas, o que vemos, também de outro lado, é que estão exagerando nas tintas em relação a esses segmentos, uma vez que, numa guerra de cerco, as lutas, de fato, batalhas ditas e havidas, foram poucas. 

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