Colunistas / Literatura
Rosa de Lima

"OS IMORTALISTAS", DE CHLOE BENJAMIN", TEM ANÁLISE DE ROSA DE LIMA

Livro foi editado no Brasil pela Harper Collins
24/11/2019 às 10:42
A Bahia já teve um técnico de futebol que se chamava Sotero Monteiro, o qual dizia conhecer um jogador de futebol pelo "arriar das malas". O mesmo não pode ser dito de um livro. O leitor não tem essa percepção 'soteriana' do conhecimento antecipado de uma obra e se alegra quando é surpreendido positivamente. Assim aconteceu comigo ao ler "Os Imortalistas", de Chloe Benjamin (Editora Harper Colins, capa dura, 331 páginas, R$47, 2018), romance que explora a história de amor de uma familia cujo destino de vida à morte fora estabelecido por uma vidente. O enredo do livro é um dos mais criativos que já li nos últimos tempos, o que é bom para os leitores que se surpreenderão a cada capítulo.

Chloe Benjamin é norteamericana autora de "Anatomy of Dreams" (literal, anatomia dos sonhos, desejos) nascida na Califórnia e residindo na distante Madison, norte dos EUA, Wisconsin, um estado de tradição ruralista, agrícola. Seu romance, no entanto, é ambientado inicialmente no Lower East Side de Manhattan, NY, quando os irmãos Gold ouvem rumores da presença de uma vidente que seria capaz de anunciar a morte de qualquer pessoa. E, sem que seus pais soubessem, quatro jovens Gold a procuram para saber o que seriam deles no futuro.

A partir desse momento, logo no inicio do livro, utilizando-se de uma linguagem moderna, parágrafos curtos, termos cifrados, colocações que às vezes parecem não se encaixar na linearidade da história, a autora prende o leitor de tal forma ao livro como se este também algum dia na vida estivesse tentando procurar uma vidente desta natureza e passa a se interessar pela trama. É aquela história que preocupa a qualquer pessoa: "Se você soubesse a data de sua morte, como seria sua vida?". Essa curiosidade se apossa dos leitores; ou, ao menos, suscita curiosidade.

O caçula dos Gold, Simon, apontado pela vidente como o primeiro a morrer, ainda jovem, parte para a costa oeste dos EUA, São Francisco, mais precisamente para o bairro Castro e se entrega ao amor aberto homo, bi e transexual, isso nos anos 1980, como se fosse aproveitar a vida ao máximo na concepção mundana.

Morre de AIDS, como previu a vidente (não a causa da doença), jovem, e arrasta consigo para a cova um amante belo e escultural que se envolvera com ele, o qual embora fosse precavido e sóbrio, acabou sendo contamiado por um paceiro de amizades coloridas múltiplas numa época em que não havia remédios e a cura para aidéticos. A autora, claro, mostra todo esse drama com a ambientação da época, a promiscuidade em Castro, a vida pelo sexo, sem dar qualquer tipo de lição de moral numa narrativa nua e crua. A vida como era no desdobrar dos 1970, anos de amor y sexo sem freios.

A partir desta morte os outros irmãos que estiveram com a vidente ficam apavorados, pois, a cada um deles dera uma data da partida. E, se confirmada a profecia, a próxima seria Klara,a irmã do meio, ainda sonhadora e sem uma profissão definida, a qual também deixa o seio da familia e se dedica a mágica no santuário do jogo e da ilusão, Las Vegas, se tornando uma famosa ilusionista com apresentações num cassino de luxo ao lado de um namorado e depois marido que também era mágico e se torna um empresário das noites glamurosas do deserto veganiano. 

É a narrativa mais complexa do livro. A autora põe aos olhos e reflexão dos leitores a realidade e a fantasia, mistura as duas coisas para ambientar a vida de Klara e sua percepção de que seria a próxima a morrer. Nesse interim, surge um policial que começa a investigar o caso e se envolve, em paixão, por Klara, ao desvendar que a vidente era uma bruxa cigana que vivia a especular sobre vidas alheias e ganhar a vida com isso, uma picareta como dizemos no Brasil. Mas, também, uma ermitã, enigmática, que vivia reclusa e deixou Manhattan para morar em lugar incerto, típico dos ciganos.

O livro passa, então, a ficar mais apetitoso, mais interessante e Klara até se envolve com o policial no sentido de tentar saber quem era a tal vidente, na real, mas não percebe que, além disso, havia uma paixão entre eles. E toma conhecimento que a vidente, Bruna Costello, na verdade integrava um grupo familiar composto por 18 pessoas que praticavam uma fraude sofisticada, em nome da morte, com base num dogma da Igreja do Espírito Livre.

A descrição da morte de Klara, antes de um grande show, é sensacional. O marido desta personagem (Raj) ainda percebe que a esposa não estava bem para a grande estreia, mas, não a ponto de entender que ela se mataria, cometeria um suicidio, e a autora expõe os enigmas entre a realidade e a ilusão, o casal já com uma filha (Ruby) pequena para criar, segunda passagem da vida para a morte, que só faz atormentar os dois outros irmãos Gold que ainda restavam e estavam na fila do fim material.

A autora então dá um corte na narrativa e aborda a terceira vitima, Daniel, médico do exército após o atentado de 11 de setembro de 2011 quando o terrorismo matou mais de 2 mil pessoas em NY, em solo americano, o que parecia impossível, e este tem a missão de aprovar os recrutas que seriam encaminhados às frentes de batalhas. Para este capítulo, a autora deu o titulo de "A Inquisição" (1991-2006) e põe, de frente, Daniel e seu inquisitor, um coronel, que o obriga a aprovar a convocaão de jovens solados, num momento em que o capitão médico vive o drama da insegurança de sí mesmo. E, questiona se valeria a pena expor esses recrutas a futura morte.

Sem saída e para não ser enquadrado no art 15 que acabaria sua carreira, Daniel cede e conhece o policial Eddie O'Donoghue, que já havia decifrado a vida dos Cestello e expõe para ele, assim como a narrativa da morte de sua irmã e a paixão que tinha por ela, o que faz com que Daniel, desesperado, de arma em punho, se dirija a montanhas situadas pós Rio Stillwater, para encontrar e matar a vidente. Encontra-a, dialoga, mas ela com poder mágico perssuassivo diz: "Agora eu te deixo para Deus". E, ele, ao invés de matar a bruxa, se mata com o tiro na própria cabeça.

O capítulo final, o mais doce (se é que podemos chamar assim), intitula-se "Lugar da Vida" (2006/2010), Varya, a última das Gold entre os filhos de Gertie e Saul, a mãe ainda viva e senil, esta amante de livros, se dedica a pesquisas sobre a longevidade e se bate com um jornalista (Luke) que aparenta se interessar sobre essas pesquisas, mas, na realidade, queria descobrir os segredos dos Costello e as mortes dos irmãos Gold. 

Final complexo, instigante, que exige muita atenção do leitor para não se perder na compreensão do livro e onde dá-se a integração do que restou da familia Gold com Raj e Ruby brilhando nos palcos.

"Os Imortalistas" é desses livros que emociona e mistura o poder da fé, de laços familiares, de momentos de épocas distintas da contemporaneidade e da perplexidade dos caminhos da vida e da morte.