Colunistas / Causos & Lendas
Lobisomem de Serrinha

LOBISOMEM DE SERRINHA vai ao japa e mostra que está civilizado

São os novos tempos que o Lobi encara numa boa também frequentando o shopping da Serra
14/10/2015 às 19:04
A essa altura da vida, aproximando-me dos 282 anos de idade em abril próximo, vocês humanos nunca entendem porque vivemos tanto, procuro manter as nossas tradições familiares, mas modernizo meus hábitos tanto que já tenho iphone, tablet, tv digital, ouço músicas pelo iTunes, vou a missa da catedral sem precisar ficar me disfarçando numa capa colonial, tomo umbuzada no Moacir ao lado de outros clientes e faço cooper na Morena Bela.

   Ainda assim, tem coisas que resisto em adotar, tanto que minha esposa Ester Loura pratica yoga e agora frequenta um grupo que se encontra toda semana na praça de alimentação do Shopping da Serra para paper, tomar vinho e falar da vida alheia. Tô fora desses modismo, ainda que tenha me convidado algumas vezes.

   No entanto, não pude resistir ao convite de minha netinha Sol, a qual ao fazer seu aniversário, chamou-me para comemorar no Japa do Shopping, pra saborear uma comida à moda asiática. Fiquei desconfiado, mas, topei. 

   Falei para ela: -  Vovô não sabe comer usando aqueles palitos japoneses, mas vou lhe prestigiar.

   - Vô! Não são palitos. São 'hashis' japoneses feitos de bambu, pauzinhos também conhecidos como saibashi, soletrou Sol em meu ouvido mouco.

   Ester tem mania de dizer que estou surdo, porém escuto tudo direitinho.

   O certo é que fomos ao Japa, eu, Ester Loura, minha neta Sol e a mãe da Ester, a senhora Antonia e fiquei admirado com o empreendimento vendo a modernidade da city, eu que ficava na Estação do Trem da Leste esperando o 'Pirulito' passar a meia-noite para fazer algum carreto de passageiro e ceiava coxas de galinhas assadas que eram vendidas por serrinhas em tendas iluminadas por fifós e armadas ao lado da balaustrada.

   Nessa época eu tinha um jepp Willys e disputava com Pandunga e Pebão passageiros na gare do trem.

   Quando chegamos a praça de alimentação do shopping tinha um rapazote cantando a música 'Mistérios da Meia Noite' , de Zé Ramalho, e isso me agradou logo de cara sobretudo o verso que fala: ​Impérios de um lobisomem/ Que fosse um homem/De uma menina tão esgarrada/Desamparada, seu professor...

   Quando sentamos no Japa, uma atendende muito graciosa chamada Carmelita, acho que este era seu nome, nos recepcionou. Minha netinha Sol só queria filezinho e batatinhas fritas de uma tenda vizinha. 

   Ester e sua madre pediram um vinho nacional Salton para a abertura dos trabalhos.

  Conversa pra cá; conversa pra lá, a música rolando, doutor Bira e esposa conversando noutra mesa, então solicitei da garconete um tira-gosto até a chegada do prato principal.

   - Minha filha você poderia nos servir uns morceguinhos fritos com alho poró, bem passados, porque adoro mastigar as suas patinhas bem torradoinhas?

   A moça me olhou desconfiada e disse: - Sêo Lobi aqui a gente não serve esse tira-gosto.

   - Como não!

   - Meu avô aqui é uma casa especializada em comida fina preparada com molhos especiais - comentou Sol cutando Ester.

   - Então - voltei a falar com a garconete - você mande preparar uma traira do açude da Cabeça-da-Vaca ao molho de sangue de anun preto com salsa, hortelã e pimenta dedo de moça - solicitei.

   Com a garconete já assustada, Ester interveio na conversa e ralhou-me: 

   - Você não vai ficar pedindo essas comidas que mais gosta, muito menos um filhote de raposa com açafrão, urtiga e suco de mangaba, porque aqui tem-se que seguir o cardápio e nós vamos pedir yaksoba e um combo de salmão.

   - Não posso tomar nem uma pinga de Lôro com uma tigelinha de sangue de capão?

   - Não. Vai beber Salton e se dê por satisfeito. Cadê sua taça?

   - Ponha aqui nesse copo para eu beber logo meia-garrafa, vá, retei-me.

   Sol entrou na conversa e lembrou: - Vô, vinho não se bebe. Degusta-se. E usa-se taças e não copos - ralhou-me.

   O certo é que Ester colocou o vinho numa tacinha que achei pequena, porque de uma bocada tomei logo toda, e já que não tinha meus pratos prediletos contentei-me em beliscar o salmão.

   Depois, quando já estava na terceira taça de vinho, gostei desse tal de Salton e pedi outra garrafa a moça, lembrei-se que, por precaução havia colocado um farnelzinho no bolso do meu bleizer e aproveitando um descuido de Ester, preocupada com os bons modos da neta, puxei um moqueadinho coberto com farinha e lancei-o na boca.

   Nisso a garçonete deu um pulo pra traz e gritou: - Vixe o lobi tá comendo um calunga assado.
Ester passou-me o rabo de olho, mas, o dito calunga já tinha descido por minha goela abaixo e ralhou-me: - Será que você vai fazer eu passar vergonha aqui no Japa?

   - Essa moça está assustada com besteira. Primeiro que não foi calunga algum que degustei e sim um preá moqueado com uma folhinha de hortelã

   - Você me disse que os preás estavam reservados para seus parentes da Feira, os colberzões! - admirou-se.

   -  Tem muitos preás ainda na sacola para eles. Só comi o mais godrinho - frisei.

   - Esse meu avô não tem jeito - soletrou Sol para Ester pedindo que ao menos limpasse a boca com um guardanapo dobrando-o educadamente e não fazendo uma bolinha de papel.

   E assim foi feito. Sai-me muito bem e paguei a conta numa boa recebendo um afetuoso abraço da garconete.