Esporte

HISTORIANDO AS COPAS 9: TRI DO FUTEBOL ARTE, 1970, p ZÉDEJESUSBARRÊTO

O futebol-arte daquela equipe tricampeã de 70 que deslumbrou o mundo emanava uma aura que perpassava tudo – ideologias, torcidas, ufanismos, protestos, guerras, amarguras...
ZedeJesusBarrêto , Salvador | 11/10/2022 às 09:39
O time de 1970
Foto: REP

                   “Os jogadores foram àquela Copa para ganhar. Ninguém pensava em outra coisa, apenas em ser Campeão do Mundo. Acho que nunca mais haverá uma seleção que reúna tantos craques e tantos homens”
          (Do jornalista Oldemário Touguinhó. Ele esteve lá, viu tudo de perto.) 
                              
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  Para os que amam o futebol como expressão cultural (fazer criativo), arte, a Seleção Brasileira de 1970 teria sido a melhor de todas as copas, beirando a perfeição. Não só pelo título conquistado de forma invicta, vencendo com superioridade todos os jogos, mas sobretudo pela beleza do futebol mostrado nos gramados mexicanos. 

  Posse de bola, fundamentos, a pelota bem tratada no chão, movimentação/troca constante de posição dos jogadores com e sem a bola, repertório ofensivo variado, aplicação tática, coragem e controle emocional, um exuberante preparo físico e, mais que tudo isso, talento. Gols e gols bonitos de ver. 
 
  Era um grupo de atletas superdotados tecnicamente, acima da média, manhosos e vencedores, comandado por um Rei humilde e generoso, dentro e fora das quatro linhas, em pleno exercício de sua majestade: Pelé. 
  
  Aquele time foi exemplar, inovou e revolucionou o jeito de jogar, com beleza e eficiência. Qualidade. A Holanda de Cruijff, em 1974, como mais tarde o Barcelona de Guardiola e a Espanha Campeã em 2010 confessadamente se inspiraram no Brasil de 70, Tricampeão no México. 
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A pátria do ‘prá frente!’

- O censo divulgado em setembro de 1970 anunciava 92.237.570 viventes no país e mais da metade, 56% já morando nas cidades. A inflação do ano foi de 19,3 %, o salário mínimo de 187,20 cruzeiros novos, o dólar a 4,95.  Cantava-se Roberto Carlos, Elis Regina (“Madalena”), Os Incríveis com a ufânica “Eu te amo Meu Brasil”, e Chico Buarque às voltas com a censura -“Apesar de Você”. 
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  Tempos políticos de cachorro doido. Depois de assinar o AI-5 (que instalou a censura oficial, calou e restringiu poderes, direitos e liberdades), em dezembro de 68, o presidente Costa e Silva morreu e o governo foi ‘provisoriamente’ gerido pelos comandantes das três armas – Exército, Marinha e Aeronáutica -, até que a chamada ‘linha dura’ dos quartéis escolheu como novo presidente do regime o General Emílio Garrastazzu Medici, gaúcho de gestos populistas, oriundo do núcleo SNI-Serviço Nacional de Informações, amante do futebol, torcia para o Grêmio, Flamengo e Atlético Mineiro, ia aos estádios com radinho de pilha no ouvido. 

  Era inflexível com os ‘inimigos’ e bom de marketing. O governo Médici criou o ‘Pra frente Brasil”, o “Ame-o ou Deixe-o” e o “Milagre Econômico”- nossa economia em alta. Tempos, do Mobral, BNH, o Rondon, a Transamazônica, o verde-amarelismo pulsando ... e a sombra das torturas pairando nos desvãos da repressão. 
                                                      E o João com isso?    
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  Um João sem medo 

 A trajetória do Tri Mundial no México/1970 começou pra valer em fevereiro de 1969, quando o diretor de futebol da CBD, Antônio do Passo, anunciou que o jornalista, cronista esportivo João Saldanha, crítico contumaz da Seleção Brasileira e da entidade desde o fracasso de 1966, assumiria o comando técnico do escrete que disputaria as eliminatórias sul-americanas para a Copa no México. A decisão foi tomada depois de uma excursão meia-boca da seleção pela Europa sob o comando de Aimoré Moreira, então desaprovado pela mídia esportiva e pelos torcedores. 
  
   Querido e respeitado no meio profissional, Saldanha era um gaúcho de nascença e carioca de vivência que tinha seu carisma e era dotado de um temperamento forte, não comia ‘reggae’, como se diz na Bahia.  Nas rodas era chamado de João sem Medo, um, comunista de carteirinha, assumido e escancarado. Tivera uma experiência meteórica como treinador do time estrelado do Botafogo do Rio, do qual era torcedor, nos anos de 1957/58, com Garrincha, Nilton Santos, Didi, Zagallo... Sagrou-se campeão carioca. 
  
   A indicação de João Saldanha foi uma sacudidela, balançou por tudo o que ele significava, e ele não deixou por menos. Chegou chocando. Exigiu carta-branca no comando do time e, de pronto, anunciou a lista dos seus 22 jogadores preferidos e convocados, titulares e reservas definidos – “quero um time com 11 feras em campo”, diria na ocasião. 
 
   As primeiras “feras do Saldanha”: Félix, Carlos Alberto, Brito, Joel Camargo e Rildo; Piazza e Gérson; Jairzinho, Tostão, Pelé e Edu (os titulares). Na reserva: Claudio, Zé Maria, Djalma Dias, Scalla e Everaldo; Clodoaldo, Dirceu Lopes e Rivelino; Paulo Borges, Toninho e Paulo Cesar Caju. 
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  Jairzinho conta que no primeiro dia da apresentação, jogadores reunidos a portas fechadas, Saldanha anunciou os titulares, que só seriam substituídos por conta de lesão ou expulsão, e disse na tampa: “quem não estiver satisfeito é só abrir a porta e sair”. Esse era o João. Os jogadores toparam. 
  
   Saldanha era um conhecedor profundo do futebol, até das mazelas, um estudioso. Sabia que o fracasso de 66 em campo tivera origem na indefinição de um time, pois tínhamos entrado e saído daquela copa sem saber escalar os 11 titulares. João era um homem culto, generoso com os amigos, civilizado e politizado, lido e rodado, sabia se comunicar e também lidar com o dia-a-dia e o emocional dos atletas. 
 
  Projetou, focou no objetivo, a Copa do México, e começou a planejar, com o fisicultor Admildo Chirol, todo um trabalho ‘científico’ visando a enfrentar o temido problema da altitude (o ar rarefeito) nas cidades da Copa. 
  
  Só que, antes, João precisava incitar suas feras a destroçar os adversários nos jogos da eliminatória, em 69. Venceu todos, alguns com goleadas. Tostão, aos 23 anos, voando ao lado de Pelé, já com 29 (faria 30 em outubro de 70). 
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As eliminatórias...  

 Antes da estreia, Saldanha reuniu suas feras para um período de treinamentos e amistosos. Um deles aconteceu na velha Fonte Nova (Salvador-BA), ainda sem o anel superior de arquibancadas, 33 mil pagantes, arbitragem de Arnaldo Cesar Coelho, uma tarde ensolarada de 6 de julho/69: 

 - Seleção Brasileira 4 x 0 Bahia (gols de Pelé, Jairzinho, Edu e Tostão). O time das ‘feras”: Félix (Claudio), Carlos Alberto, Djalma Dias, Joel e Rildo (Everaldo); Clodoaldo (Piazza), Gerson (Rivelino) e Pelé (Dirceu Lopes); Jairzinho, Tostão e Edu. 
 
  O Tricolor baiano: Marco Aurélio, Mura, Zé Otto, Adevaldo e Paez; Amorim (Ailton) e Elizeu; Jair (Artur), Zé Eduardo (Adauri), Sanfellipo, Oto Valentim e Gagé. Marinho Rodrigues era o treinador. inesquecível. 
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  A seleção estreou no torneio eliminatório em 6 de agosto, fora de casa, contra a Colômbia: 2 x 0, gols de Tostão. Logo depois a Venezuela levou 5 x 0, com três gols de Tostão e dois de Pelé, que declarou sobre o ‘mineirinho’, parceiro de ataque: “É um novo Coutinho!”  Tostão era técnico, rápido e inteligente, estava no auge. 
  
  O terceiro jogo, em Assunção, foi um inferno, com os paraguaios aprontando desde a chegada, e no hotel ... a ponto de uma noite Saldanha ter saído com Antônio do Passo, Brito e Carlos Alberto para enfrentar um grupo de torcedores ‘borrachos’, na rua, aos tapas. João chegou a tomar o revólver de um deles, entregando-o à polícia. Estádio cheio, Saldanha mandou todos a campo, para aquecer, tomar vaias, garrafadas e xingamentos, aclimatando-se, antes da batalha: Brasil 3 x 0.

  Na volta, a 21 de agosto, 6 x 2 na Colômbia (Tostão 2, Edu, Pelé, Rivelino e Jair); na sequência, 6 x 0 Venezuela (Tostão 3, Pelé 2 e Jair). O fecho das eliminatórias, invicto e sem levar gols, foi no Maracanã lotado com 180 mil pessoas, 1 x 0, gol de Pelé, depois de arrancada e chute da esquerda, de Edu. 
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 A derrubada do João 

 A despeito dos resultados e do bom futebol mostrado nas eliminatórias, Saldanha, que não tinha língua presa e não fugia do pau, aos poucos foi perdendo as estribeiras, criando áreas de atrito com repórteres que lhe faziam perguntas que ele considerava idiotas, soltando farpas contra dirigentes da própria CBD e, por fim, com os militares do governo – que já não o engoliam bem, até por ser comunista. E o futebol começava a ser tratado e usado como ‘questão de estado’, o ministro da educação Jarbas Passarinho (também militar) dando pitacos, intervindo e interferindo. 

  Afora algumas respostas ríspidas em coletivas, criando um clima hostil com alguns repórteres, Saldanha foi derrubado depois de uns episódios, já em 1970, enquanto arrumava as malas, o passaporte para o México e bebia um pouco mais da conta para aliviar o estresse. 

 Num desses episódios, invadiu armado a concentração do Flamengo para enfrentar o treinador Yustrich, que era um ‘homão’ e andava esculhambando o trabalho dele na Seleção desde o amistoso em BH – Seleção Brasileira 0 x 2 Atlético Mineiro, com dois gols de Dario, o Dadá Maravilha. O Homão era então técnico do Galo, saiu arrotando grandeza e chegou a chama-lo de covarde. Ainda bem que os dois não se bateram de frente, poderia ser trágico.   

 Observação: - Foi depois desse jogo contra o Galo Mineiro que o general presidente Médici teria dito numa roda de amigos palacianos que gostaria de ver Dario na Seleção. Vazou, e os repórter foram saber de Saldanha. A resposta, de pronto, feito um soco no estômago: “O presidente escolhe o ministério dele e eu escalo a Seleção”. 

  Ecoou, e as entranhas do poder sentiram o golpe, Havelange e Antônio do Passo foram chamados a Brasília, a batata de Saldanha estava quase assada: - “... passou dos limites, não tem mais as condições de equilíbrio emocional para um cargo de tamanha importância”, concluíram. Pois ainda viria a gota d’água que fez transbordar o copo da crise/a derrubada.

  Nos amistosos, Saldanha costumava tirar de campo o meia Gérson e Pelé, até porque, disse um dia, eram atletas que não tinham mais o que treinar nem mostrar e precisavam ser preservados para que chegassem inteiros na Copa. E se um deles machucasse, quem substituiria, como jogaria o time? Num desses babas, então, João pôs Gérson no banco, noutro o ‘rei’ Pelé. 

  De provocação, a pergunta: - Pelé no banco por quê?  E João, na tampa: - Tá míope, só enxerga de óculos, não dá pra jogar de noite...

  No dia seguinte era o assunto, estava nas manchetes dos jornais, microfones, tevê: - O Pelé está cego, acabou, já era o Rei ...   

  Não se sabe até hoje se Saldanha fez de sacanagem, se criara de propósito, com aquilo, o mote da sua demissão do cargo, que ele mesmo já tinha como certa, ou ... se era mais uma de suas artimanhas para estimular, desafiar, instigar mais a fera.  Pelé se doeu, de vera, com os comentários e decidiu dar tudo de si na preparação, chegaria no México em plena forma, na ponta dos cascos. Chegou. 

 Em 17 de março de 1970, menos de três meses para o início da Copa, Saldanha foi demitido numa jogada esperta de Havelange, anunciando que trocaria toda a Comissão Técnica, inclusive Antônio do Passo. Blefe, só caíram João e seu auxiliar direto, o amigo Russo. 

  Quem substituiria Saldanha? Tentaram o técnico Otto Glória, em Portugal, não topou. Sondaram Dino Sani (ex-seleção), não fecharam. Então, Zagallo, treinador do Botafogo, bi-campeão do mundo como jogador, nome aprovado por Jarbas Passarinho e querido, respeitado pelos atletas... Assim, o Lobo Zagallo assumiu, comandou a glória do Tri no México 
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 As estratégias do ‘Velho Lobo’

 Zagallo não era, nunca foi bobo. Soube manter as coisas boas, cultivou o espírito de vitória que João Saldanha construiu, adotou o planejamento, fez correções e ajustes técnicos que se mostraram fundamentais no decorrer da campanha. Na nova convocação, outras caras: três goleiros (Leão e Ado chegados), dois zagueiros (Baodochi e Fontana); o garoto Marco Antônio no lugar de Rildo; o centroavante Roberto Miranda, o ponta Rogério do Botafogo e, claro, o grandalhão artilheiro Dario, um afago ao general presidente Medici.  

  Todo o cuidado com a excelência no preparo físico (disparado o melhor no México), com Admildo Chirol comandando a equipe de preparadores - Cláudio Coutinho, Parreira e Carlesso, todos com experiências no exterior e passagens pela Escola Militar brasileira. 
  
  A grande dúvida até o começo da jornada mexicana era Tostão, às voltas com um descolamento de retina que o impedia, por exemplo, de cabecear. O grupo apostou nele, que jogou e muito, mesmo assim.
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 Ao descer no aeroporto de Guadalajara, ainda em março, Zagallo mandou recado aos mexicanos: “Somos os primeiros a chegar e seremos os últimos a sair”. 
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 Foram dois meses de dedicação total, em Guanajuato (cidade mais alta), o grupo focado, sem folgas, sem farras, isolado do noticiário, do que acontecia na política, só  no treinamento físico, nos exaustivos retoques técnicos e táticos, com ensaios de jogadas, de alternativas, de movimentação, de estratégias ... e mexidas pontuais na escalação. 

  Zagallo costumava ouvir os atletas mais rodados e queria achar um jeito de escalar os melhores. Piazza, que era meio-campista do Cruzeiro, por exemplo, foi para a quarta zaga, era experiente e tinha uma boa saída de bola. O eficiente Everaldo entrou na lateral esquerda no lugar de Marco Antônio (19 anos), mais afoito. 

  Rivelino não podia ficar de fora e foi escalado como um ponta-canhoto falso, fechando e completando o meio campo com Clodoaldo e Gérson; na frente, a dupla Pelé (“é você e mais 10, comigo”, disse-lhe Zagallo) e Tostão de falso 9, deslocando-se com inteligência, sem bola, tocando de primeira e abrindo espaços. Gérson, Carlos Alberto e Pelé comandavam, lideravam em campo.
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  O México 
  Um país latino localizado ao norte das Américas, colado no sul dos Estados Unidos, com um histórico de colonização impiedosa dos espanhóis - invasões, usurpação de territórios, extermínios e corrosão cultural ao longo dos tempos. 

 Há mais de 10 mil anos os primitivos habitantes daquele espaço já cultivavam o milho, ainda hoje alimentação fundamental da população, base das famosas ‘tortillas’. 

 Segundo os historiadores, na origem eram os Olmecas e os Maias, civilizações de avançados conhecimentos telúricos, tecnológicos, incríveis arquitetos. Povos guerreiros disputavam espaços de norte a sul o que facilitou o domínio dos europeus, que ‘descobriram’ a América (em 1492 Colombo chegou nas Bahamas) e não pouparam nativos e feitorias, arrasando tudo o que viam pela frente. De 1 500 a 1 800 toda aquela região, incluindo as ilhas do Caribe, eram chamadas de “Nova Espanha”.  

 Depois, no séc XIX, o estudioso alemão Alexander Vav Humboldt agrupou os povos continentais remanescentes sob o nome de Astecas – Aztec, da região de Aztlán. Mas a depredação da cultura, das comunidades e do território mexicano continuou, mesmo depois dos espanhóis, os primeiros conquistadores, até mesmo depois da chamada Independência Nacional Mexicana em 1821. O Texas, o Novo México, a Califórnia foram ocupados na tora, anexados pelos Estados Unidos, eram total ou parcialmente territórios mexicanos. 
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 Em 1970, ano da Copa, o México tinha mais de 48 milhões de habitantes, nove milhões vivendo na poluída, alegre, desigual e violenta Ciudad de México, a capital, e subúrbios empobrecidos.

 - Os jogos aconteceram na cidade do México (Estádio Azteca, com 115 mil lugares, construído para a Copa), em Guadalajara (estádio Jalisco, 57 mil), em Puebla (Cuauhtémoch, 25 mil), em León e em Toluca (estádio Luiz Gutierrez Dosal, com capacidade para 15 mil pessoas). 
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Campanha irretocável 

O Brasil estreou no dia 3 de junho, no estádio Jalisco de Guadalajara, uma tarde de quarta-feira, contra a    Tchecoslováquia, goleando: 4 x 1. 

   A Seleção Brasileira dominava, tocava bem a bola, já criara duas boas chances de gol, mas foram os Tchecos que abriram o placar, aos 12 minutos, após um erro de passe de Brito, com Petrás indo comemorar de joelhos diante do público, fazendo o sinal da cruz ortodoxo. O Brasil empatou aos 22’, com Rivelino ‘patada atômica’ batendo falta sofrida por Pelé, na meia lua. 

 O show viria no segundo tempo. Pelé desempatou aos 15 minutos, ao receber na área um lançamento perfeito, de 40 metros, de Gérson; matou no peito, trocou de pé e bateu no canto, ao seu estilo. Minutos depois, Gérson novamente lançou longo, nas costas da zaga, que parou pedindo impedimento, e Jairzinho, o Furacão da Copa, matou na caixa, deu um chapéu no goleiro Viktor, que saia atarantado, e fuzilou – só não entrou com bola e tudo porque teve humildade. O quarto gol foi uma pintura de Jair, aos 38 minutos, recebendo de Pelé na direita e fazendo fila; driblou uns quatro pelo caminho e bateu cruzado, rasteiro, no canto. 
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  A despeito da goleada na estreia, a jogada mais marcante da partida foi aquele ‘gol que Pelé não fez’, mas abriu caminhos, deu a dica para que outros tentassem daí pra frente e ainda hoje. Foi assim: - O Rei recebeu de Gérson no grande círculo, quase na intermediária brasileira, levantou a cabeça e, enquanto Gérson pedia o passe de volta, bateu longo, de direita, pelo alto, encobrindo o goleiro Viktor que tentava voltar de costas, desesperado. 

  A pelota passou a um palmo do ângulo Tcheco, com os jogadores todos perplexos e a torcida inteira na arquibancada, de pé, aplaudindo.  Coisa de gênio, desses acontecimentos que mudam tudo daí por diante. Ninguém tinha pensado antes?  Tostão depois confessaria que ficou arrepiado com a jogada antológica e Gérson disse que teve de pedir desculpas ao Rei, envergonhado, sem entender nada.
Era só o começo, uma amostra.
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 A ‘final’ contra ingleses    

 O sorteio das chaves nos colocou de frente com os ‘Campeões do Mundo de 1966’, a Inglaterra do goleiro Banks, do excelente Bobby Moore, do lendário meia Bobby Charlton, do artilheiro Hurst... Era um time vitorioso, bem dotado fisicamente, com uma defesa sólida. Mas também empinados e arrogantes, odiados desde a chegada pelos mexicanos por terem levado comida e água mineral para não se contaminar com os subdesenvolvidos. Eram fortes física e coletivamente, equipe bem postada, entrosada, confiante.

   O treinador Alf Ramsey deu entrevista garantindo que venceria o Brasil em qualquer circunstância, que aquela Inglaterra era mais forte que a de 1966 e que  estaria na final, no Azteca, em 21 de junho. 
 
   Não esteve, deu Brasil, 1 x 0.  
  
  Mais do que as insistentes bolas alçadas, uma característica do futebol inglês, nos preocupava a ausência, um desfalque sensível, do cerebral meia Gérson, sentindo uma fisgada no músculo da perna e substituído pelo ponta Paulo Cesar, o Caju, (Rivelino foi pro meio, fazer a do ‘papagaio’ Gérson). Vencemos com mérito e sorte (diria Pelé, depois) a batalha mais difícil da campanha. Até pela qualidade do adversário, que desperdiçou umas duas chances de golear e chegou a acertar uma bola no travessão de Félix, que faria naquele dia seu melhor jogo na Copa. Banks também brilhou no arco inglês. Uma partida digna de uma “final”. 
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  O lance mais bonito do jogo, até hoje visto, revisto e citado, aconteceu aos 11 minutos: - Jairzinho em velocidade pela direita cruzou de cima da linha de fundo e lá do outro lado, na linha da pequena área, Pelé subiu, subiu... e testou firme, pra baixo, no canto; a bola quicou no chão, quase em cima da linha, já tinha passado pelo goleiro Banks que, num salto acrobático, conseguiu dar um tapa jogando a pelota pro alto.  

  Um lance inteiro de cinema – a jogada de Jair, o salto e a cabeçada de Pelé, o ‘milagre’ de Banks, um dos maiores goleiros da história que repetiu em várias entrevistas: ‘Foi a maior defesa de minha carreira”. É tida como a melhor de todas as copas.  Banks e Pelé tornaram-se grandes amigos.
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  Quando os ingleses tentaram ‘intimidar’, com o avante Lee pegando duro Piazza, depois Everaldo, depois chutando Félix já caído, o ‘capita’ Carlos Alberto apanhou ele de jeito, numa dividida, acertando-lhe o joelho. O lateral brasileiro levou cartão amarelo mas o gringo Lee amarelou, sumiu em campo. 
  
  O Brasil começou melhor o segundo tempo, atacando... e o gol saiu aos 14’, noutra pintura de jogada. Zagallo já tinha mandado Roberto Miranda aquecer para entrar no lugar de Tostão, queria o avante botafoguense mais enfiado no meio da ótima zaga inglesa. 

  Tostão sacou e acendeu: - Brigou por uma bola que parecia perdida, já na entrada da área adversária, pelo lado esquerdo, deu uma cotovelada de leve livrando-se do primeiro, já dentro da área, achou espaço para meter a bola entre as pernas do capitão Bobby Moore, girou e cruzou para o lado oposto onde Pelé dominou ameaçando o chute e dois ingleses caíram para bloquear; então, em fração de segundos, o Rei rolou de lado para Jairzinho, que fechava da direita, encher o pé. Show de técnica, habilidade, inteligência, criatividade e jogo coletivo - 1 x 0.  
 
  Com o cerebral e veterano meia Bobby Charlton bem marcado por Clodoaldo e já sem pernas, Ramsey substituiu, pôs fôlego novo e foi pra cima, ao tudo ou nada, alçando dúzias de bolas na área brasileira. Brito saiu de campo com calombos na testa, de tanto cabeceio. Por volta dos 26 minutos, Ball pegou uma sobra na meia lua e acertou o travessão de Félix, só espiando. Um jogaço, até o fim. Seguíamos. 
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 Romênia e Peru vencidos

 Vencemos sem susto a Romênia (3 x 2), dia 10 de junho, ainda no Jalisco de Guadalajara, mas não jogamos bem. Com muitas mudanças no time em função de lesões e incômodos musculares, Zagallo lançou Fontana ao lado de Brito (zaga do Vasco), adiantou Piazza ao lado de Clodoaldo no meio campo (Rivelino e Gerson fora),  e Paulo Cesar Caju na ponta esquerda. 

  No intervalo, pôs Marco Antônio na lateral esquerda e até o menino Edu (20 anos, ponta) na segunda etapa. Sofremos com problemas defensivos, Fontana destoava. Mas Pelé fez dois, um de falta no primeiro tempo e outro no segundo, escorando passe de calcanhar de Tostão. O segundo gol brasileiro (aos 22 minutos) foi de Jairzinho, completando boa jogada (botafoguense) de Paulo Cesar pela esquerda. Levamos dois gols bobos. 
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  Mais difícil seria o Peru, já pelas quartas-de-final, uma equipe com bons jogadores (o astro Cubillas, Gallardo, Sotil, Mifflin, Chumpitaz...) e muito bem treinada pelo brasileiro Didi, nosso meio-campista bicampeão. O ponto fraco do Peru estava no arco, o goleiro Rubiños, meio parrudo. Foi um jogo bonito, aberto, ofensivo, bola no chão, troca de passes, bom de ver. Deu Brasil, 4 x 2.  

 Marco Antônio seguia na lateral esquerda, Gérson jogou meio tempo e nossa defesa voltou a assustar. Aos 11’, Tostão roubou uma bola do desatento lateral Campos e rolou para o chute forte frontal de Rivelino, no canto – 1 x 0. Aos 15’, de cima da linha de fundo, pela esquerda, Tostão chutou entre Rubiños e a trave, um peru – 2 x 0. Do outro lado Félix também papou um frangote, aos 28’, num chute sem ângulo, pelo alto, do veloz ponta canhoto Gallardo. Logo no começo do segundo tempo, Tostão ampliou (3 x 1), completando uma finalização/passe de Pelé. Cubillas diminuiu depois de um bate e rebate da zaga ‘canarinho’ e Jairzinho fez o dele, fechando o placar, aos 32 minutos, recebendo de Rivelino e driblando Rubiños. Estávamos nas semifinais.
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  Xô ‘maracanazzo’   

 Os uruguaios criaram um clima de guerra fora e dentro de campo, com a lembrança do ‘fantasma’ da Copa de 50, como se fossemos tremer. Até o lendário Ghiggia, carrasco de 50, levaram pro estádio. Nas ruas de Guadalajara rolou pancadaria entre torcedores e no gramado... entradas duras e muita catimba. O árbitro espanhol teve trabalho.

 Para dramatizar ainda mais a batalha, os uruguaios, que só faziam se defender, fechadinhos, abriram o placar aos 18 minutos, após um erro de passe de Brito e uma finalização de canela do ponta direita Cubilla, já na linha de fundo, Félix de bobeira e a bola pererecando até as redes – 1 x 0 Uruguai. Marcação dura, Gérson e Pelé bem vigiados, ritmo travado, do jeito que os uruguaios gostam, até que Clodoaldo deixou Gérson guardando atrás e lançou-se como homem-surpresa à frente, tabelando e recebendo já na área um ótimo passe profundo de Tostão, pegando de primeira, empatando ainda no primeiro tempo – 1 x 1. Foi o único gol do menino ‘Corró’ na Copa, mas como foi importante!  

 Os velhos rivais morrinhavam no segundo tempo. Pelé, mesmo travado com faltas, comandou a virada. Aos 16 minutos Ancheta derrubou o Rei na área, pênalti, mas o árbitro preferiu dar falta, fora. Minutos  depois, o goleiro Mazurkiewisck cobrou um tiro de meta rasante e Pelé, no grande círculo, pegou de primeira arrematando no gol, coisa de gênio, mas o goleirão uruguaio conseguiu evitar o gol, no susto. Já aos 31’, numa puxada de contragolpe, Pelé no círculo central deu um leve toque de primeira na bola tirando dois marcadores, desmantelando a defesa uruguaia. 

  Tostão recebeu, deu continuidade ao lance rápido e enfiou passe longo para a corrida de Jairzinho fechando da direita para o meio, nas costas da zaga. Jair ganhou no corpo, na astúcia, na corrida  e bateu cruzado, rasteiro, acertando o canto – 2 x 1. Era a virada. 
  
  Os uruguaios partiram pra cima, no desespero. De tanto apanhar, Pelé decidiu dar um troco e num lance ofensivo pela lateral esquerda do campo deixou um cotovelo na cara do marcador Fontes, que vinha por trás num carrinho. O árbitro marcou falta em favor do Brasil. Os uruguaios chegaram a assustar numa cabeçada de Cubilla, defesaça de Félix. Aos 44’, Pelé dominou na entrada da área inimiga, protegeu e rolou para o tiro seco fatal de Rivelino, no canto – 3 x 1.  Estávamos na final. 
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 Porém, antes de o árbitro apitar o final, o Rei brindou o mundo da bola com mais uma das suas jogadas geniais, o outro ‘gol que Pelé não fez’. Lançado em profundidade por Tostão, bola no chão, deu um drible de corpo em Mazurkiewick, sem tocar na bola – o chamado corta-luz - e bateu cruzado, rasteiro, a pelota riscando por fora o rodapé direito uruguaio. Outro lance de cinema, exemplar, até hoje visto, revisto e tentado por alguns mais bem dotados.
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 Itália de quatro na final  

 A final aconteceu no Estádio Azteca, capital mexicana, ao meio dia de um domingo, dia 21 de junho/70. Os italianos vinham de um jogo com prorrogação dura contra a Alemanha – 4 x 3, três dias antes, e os brasileiros subiam para os 2.800 metros acima do nível do mar da Ciudad de México, ar rarefeito, bola rápida e com tendência a subir em chutes longos e fortes. 

  Uma decisão sem favoritos mas a torcida – 107 mil nas arquibancadas – era verde/amarela. 

 A Italia começou fogosa, forçando duas boas intervenções de Félix antes dos 10 minutos, marcando homem-a-homem, toda vigilância pra cima de Pelé e Jairzinho. Aos 18’, Tostão cobrou um lateral da esquerda para Rivelino que, mesmo apertado, girou de canhota levantando a bola na direção da pequena área italiana; o goleiro Albertosi não saiu, Pelé (1m73) subiu muito mais que o grandalhão Burgnich e testou com estilo, no canto – 1 x 0. O time canarinho tomou conta do jogo, trocando passes, assediando, mas, por volta dos 38 minutos, Clodoaldo foi enfeitar um passe de calcanhar para Everaldo e o esperto Boninsegna roubou-lhe a bola, encarou Brito e Félix e bateu para o gol vazio, empatando. Estranhamente, o árbitro alemão apitou o final da primeira etapa quando Pelé tinha a bola dominada limpa dentro da área italiana, de frente para o gol, e ia desempatar a partida.

  A segunda etapa foi show dos brasileiros que sobravam fisicamente e envolviam com troca de passes o adversário. Gérson fez 2 x 1 aos 20 minutos num chute de canhota da entrada da área, acertando o canto. Cinco minutos depois, Gérson fez outro daqueles lançamentos longos preciosos para a área inimiga, Pelé subiu e ao invés de testar para o gol, como esperava o goleiro, serviu a Jairzinho que entrava do lado oposto em velocidade, acompanhado por Fachetti, empurrando para as redes e, ali, liquidando os italianos que já não conseguiam acompanhar o ritmo brasileiro: 3 x 1.

 Estava reservado como fecho de ouro do título e do mundial certamente o gol coletivo mais bonito de todas as copas. Os brasileiros por um minuto e meio trocando passes, de pé em pé, sem os italianos verem a cor da bola, até que Clodoaldo, ainda no campo defensivo, faz um carnaval de dribles – um, dois, três, quatro – passou a Rivelino na lateral esquerda, saiu o lançamento esticado rente à linha de lado para Jair, caído pela canhota e acompanhado pelo grude Fachetti; Jair descambou para o meio e achou Pelé, nas proximidades da meia lua, O Rei amaciou, olhou de lado e chamou o lateral direto Carlos Alberto, conforme tinham combinado nos vestiários, penetrando livre. O capita acertou um chutaço de primeira estufando as redes e saindo pros festejos, título sacramentado. 

  Brasil, primeiro tricampeão do mundo! 

  Os mexicanos invadiram o gramado a comemorar com os campeões. Tostão ficou de cuecas, arrancaram-lhe tudo. O Rei Pelé, só de calção e chapelão mexicano, desfilou pelo gramado num andor humano, carregado pela multidão, com fosse um semideus, glorificado. 

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  O elenco do Tri, sob o comando de Zagallo:

  - Félix (Ado e Leão), Carlos Alberto (Zé Maria), Brito (Baldochi), Piazza (Fontana e Joel Camargo), Everaldo (Marco Antonio), Clodoaldo, Gerson (Paulo Cesar Caju), Rivelino (Edu), Jairzinho (Roberto Miranda), Tostão (Dario) e Pelé. 
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  - Pelé foi eleito/escolhido O Craque da Copa. 

  - O artilheiro foi o centroavante Müller, da Alemanha, com 11 gols.
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 Curiosidades

- Como primeiro a vencer três vezes uma Copa, o Brasil ficou em definitivo com a Taça Jules Rimet. Aquela mesma que em dezembro de 1983 foi roubada na sede da CBD, na rua da Alfândega, Rio de Janeiro, depois derretida, fundida ... Os ladrões e o receptador foram presos. Um ano depois a FIFA presenteou o Brasil com uma réplica, também em ouro. É a que está desde então na sede da CBF.  

- A Copa do México/1970 foi a primeira em que aconteceram substituições, apenas duas por jogo. E permitidos cinco jogadores no banco de reservas. Nela, também, os árbitros passaram a usar os cartões vermelho e amarelo para advertir e punir os atletas por infrações cometidas.

 - Foi também a primeira Copa transmitida pela tevê, ao vivo, para todo o planeta. Façanha do Telesistema mexicano, detentor dos direitos, e da ousadia do bilionário empresário Emílio Azcárraga Milmo, um dos construtores do Estádio Azteca e principal executivo do conglomerado de comunicações Telesistema. No Brasil, vimos os jogos em preto e branco, via Embratel, a estatal criada no governo militar. Transmissão em rede das tevês Tupi, Globo e Bandeirantes. 

- O Tri no México marcou o fim da ‘Era Pelé’ na seleção. Ele ainda jogaria alguns amistosos com a camisa ‘canarinho’, despedindo-se oficialmente no dia 18 de julho de 71, contra a Iugoslávia, com o Maracanã lotado e as arquibancadas gritando “fica, fica, fica...”     

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 A Minicopa dos Militares  

 Quem sabe, já ciente e amargurado com o que acontecia nos porões do regime e também com  o uso político que o governo militar fez da conquista do Tri no México, Pelé – um Rei que foi reservista do Exército, aos 18 anos – preferiu ficar de fora da Copa do Sesquicentenário em 1972, patrocinada pela CBF/governo Médici, plenos anos de chumbo grosso, para comemorar os 150 anos de independência do Brasil. 

Foram 20 seleções com jogos distribuídos nas principais capitais do país inteiro. O Brasil conquistou a Taça Independência no dia 9 de julho, no Maracanã, fazendo 1 x 0 sobre o Portugal de Eusébio (gol de Jairzinho, de cabeça, no segundo tempo).  Jogaram Leão, Zé Maria, Brito, Vantuir, Marco Antonio; Clodoaldo, Gérson, Rivelino; Jairzinho, Tostão, Leivinha (Dario). Gérson despedia-se, então, da Seleção. 
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   A Arte além do (des)humano 

  O futebol-arte daquela equipe tricampeã de 70 que deslumbrou o mundo emanava uma aura que perpassava tudo – ideologias, torcidas, ufanismos, protestos, guerras, amarguras...

 ...”de repente é aquela corrente pra frente/ parece que todo o país deu as mãos/  todos ligados na mesma emoção/ tudo é um só coração// Todos juntos, vamos! Pra frente Brasil, Brasil! / Salve a Seleção!”      
 Era um canto que ecoava.

 Há relatos de presos políticos que mesmo no cárcere, entre uma sessão de tortura e outra, não deixavam de vibrar com os gols, a elegância e comando do ‘capita’ Carlos Alberto, a dinâmica de Clodoaldo, as patadas e dribles de Rivelino, os lançamentos milimétricos de Gérson, as arrancadas e gols de Jair, a inteligência e genialidade de Tostão, o brilho da majestade do Rei Pelé... 

 A beleza da arte, os encantos da deusa-bola eram maiores que tudo. Assim parecia.
 Eternas lembranças. 
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PS : - Só voltaríamos a vencer outra Copa 23 anos depois, em 1994. 
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