Cultura

ROSA DE LIMA COMENTA SOBRE AS MELHORES CRÔNICAS DE JOÃO DO RIO

Coleção das Melhores crônicas organizada por Edmundo Bouças e Fred Góes
Rosa de Lima , Salvador | 10/05/2024 às 08:52
Coleção Melhores Crônicas, editora Global
Foto: BJÁ

     A seleção de crônicas escritas por João do Rio no início do século XX e organizada por Edmundo Bouças e Fred Góes (Coleção Melhores Crônicas, Global Editora, 327 páginas, R$51,19 à venda pela Amazon) mostra um retrato da cidade do Rio de Janeiro e seus personagens das ruas e salões - do glamour ao submundo - na pena do jornalista, contista e teatrólogo carioca João Paulo Emílio Cristovão dos Santos Coelho Barreto (1881-1921), que morreu jovem aos 39 anos de idade e soube retratar como nenhum outro as mudanças que aconteceram na capital brasileira no momento de transição do Império para a República, e também da virada do século.

    Ora, quem viveu como nós a virada do século XX para o XXI, sabe o que isso significa em termos de sensações presenciais. E, se na virada do século em que vivemos onde avançaram as tecnologias da computação e da robótica, o homem cada vez mais automatizado e plugado, na virada do século XIX para o XX, época de João do Rio, as mudanças também foram profundas tanto em relação ao comportamento humano e a introdução do automóvel na vida cotidiana das pessoas, como no campo político, o Brasil deixando de ser um Império no modelo português para um regime republicano no estilo francês.

     Ademais, apagou-se a memória de parte da arquitetura colonial com o surgimento de largas avenidas e prédios monumentais com a expansão dos usos do cimento, do ferro e do vidro. Tudo isso mudou o cenário visual da capital do país, o que serviu de inspiração e modelo para outras capitais - como aconteceu com Salvador na gestão do governador JJ Seabra (1912/1915) quando foi aberta a Avenida Sete de Setembro.

     João viveu nesse epicentro da época do "bota abaixo" como ficou conhecida a reforma Haussemianna organizada e executada pelo prefeito Pereira Passos e da "bélle epoque" carioca, ambas inspiradas e copiadas no modelo parisiente do barão Georges Eugénne Haussmann (prefeito do departamento do Sena, Paris, 1853/1870,  qual remodelou Paris abrindo os bulevards espaçosos, e os cafés e "night-clubs" eram os pontos efervescentes. 

    João do Rio como jornalista e cronista não foi apenas um observador do que se passava na vida da população do Rio de Janeiro, centro do poder do Brasil, mas, vivenciou, participou, flanou ao estilo Baudelaire. Isto é, integrava os furdunços e rapapés dos dias e noites cariocas, boêmio que era, e não apenas assistiu os eventos ao largo. João amava as ruas e é conhecido, na literatura da crônica, como aquele que melhor a interpetou com seus inúmeros personagens. 

      O livro "Coleção Melhores Crônicas"  stá estruturado por épocas entre 1908 e 1917 e os organizadores decidiram por este modelo visto que, em 1908, englobaram as crônicas que situaram como "A Alma Encantadora das Ruas"  - "A pintura das ruas", "Cordões" (Carnaval), "As Mariposas do luxo", "A Fome Negra", "As mulheres mendifgas" e "As pequenas profissões; em 1909 - o cinematógrafo e as crônicas cariocas - "Quando o brasileiro descobrirá o Brasil?", "Junho de outrora", "As crianças que matam", "O velho mercado" -crônicas bem saudosistas; 

      Depois, ano 1911, crônicas que intitularam "Vida Vertiginosa" - "A era do automóvel", "O chá e as visitas", "O homem que queria ser rico", "O último burro" (bondes), "O dia de um homem em 1920"; 1912 com o subtítulo de "Os Dias Passam" - "A Revolução dos filmes", "Gente às janelas"; 1916, crônicas e frases de Godofredo de Alencar - "Afrodisia", "As opiniões de Salomé", "Zé Pereira" e "Maria Rosa", "A curiosa do vicio"; e 1917 (Pall-Mal Rio) , com "O tipo carioca", "O clube e os burros", "Jantar", "O guardanapo do garçom carioca", "Clic! Clac", "Vestidos" e "No Automóbvel Clube".

     O leitor vai perceber ao longo da leitura do livro que João acompanhava com olho clínico os movimentos da cidade do Rio de Janeiro, a evolução dos costumes, e em determinados momentos revela uma ponta de saudosismo de um Rio que não mais existia e era bom e acolhedor. Parece-nos estranho aos olhos de hoje verificar esse sentimento, no inicio do século XX. 

     Em "Junho de Outrora" lembra: - Um baile de junhoi! Ai! como os rapazes daquele tempo o gostavam e o aproveitavam! Não havia cartões de convites com termos em inglês, nem cotilons e flirts. Os burgueses convidavam para "para uma brincadeira lá em casa". A dona do lar talvez aparecesse de matinê, mas a ceia era farta, estava-se como na própria casa e a alegria simples parecia rir em cada lábio e em cada olhar. Fora, no quintal ou no jardim, os meninos pintavam na sala, a valsar, as moças namopravam, e o fogo era dentro e fora da casa, porque havia os fogos de salão, a fonte bouquet, as chuvas de ouro e prata, as pérolas Fontaine, as serpentes voadoras, os fósforos elétricos, as cobrinhas de Faraó ()...as borboletas davam um estalo e tinham um verso. Serviam, para o nanmoro, o puro irmçao mais velho desse doente blasê que se chama o flirt".

     Veja, admiváreis leitores e leitoras, a linguagem usada por João quando se chamava de "baile" uma festinha junina, sem cartões com termos em inglês, a dona do lar só aparecendo de matinê (parte da tarde), valsava-se e as moças namoravam. Palavras e modos de vida que, hoje, estão em desuso como valsar, moças, dona do lar, namorar, e fogos com estalos onde existiam versos que serriam para o namoro.

     A pena de João desliza sobre os movimentos de uma determinada época e esta é a principal "arma" e característica de um cronista. Mostrar exatamente ou ao menos de forma a mais aproximada possível como era o Rio de Janeiro no inicio do século XX, o Rio a capital do país e o centro cultural e político mais importante, que irradiava isso para o restante do Brasil (e João questiona: quando o brasileiro vai conhecer o Brasil?), o que ainda vale nos dias atuais.

     E os leitores vão encontrar expressões e modos de viver bem diferentes dos atuais, o Brasil daquela época ainda respirando e usando tudo que emanava da Europa, e João - pelo que podemos ver amava Paris e certamente falava francês, pois, usava algumas expresões em francês - o que é perfeitamente compreensivel porque Paris era o farol iluminista do mundo ocidental da América do Sul. 

     "E, subitamente, é a era do automóvel. O monstro transformador inrrompeu, bufando, por entre os descombros da cidade velha, e como nas mágicas e na natureza, aspérrima educadora, tudo transformou com aparências novas e novas aspirações. Quando os meus olhos se abriram para as agruras e também para os prazeres da vida, a cidade, toda estreita e toda de mau piso, eriçava o pedregulho contgra o animal de lenda, que acabava de ser inventado na França". 

     Dou essas pinceladas citando o advento do automóvel para que os nossos leitores se assim se interessarem leiam a obra de João do Rio. Eu acho fantástica. Não se trata de um livro de história ou algo didático em sociologia, mas tem muito da história do Rio e do seu povo.