Cultura

NO MEU TEMPO DE MENINO, MÉDICOS, BARBEIROS, ALFAIATE TITI E 'PIRULITO'

São os nossos heróis que ficam na memória para o resto da vida e que lembro com saudade
Tasso Franco , da redação em Salvador | 23/09/2020 às 08:16
Dr Miguel Noguieira, em 1918, e o culto a Ruy Barbosa
Foto: Museu Pró Memória
   O jornalista Tasso franco publicou nesta quarta-feira, 23, a 18ª crônica do seu livro "No Meu Tempo de Menino, o último apito do trem", Serrinha, 1945/1957, e fala dos médicos, sapateiro, alfaiates e barbeiros. Leia crônica abaixo e as demais no aplicativo wattpád.

   MÉDICOS, BARBEIROS E O SAPATEIRO “PIRULITO” E O ALFAIATE TITI

   Como falei dos meus dentistas no meu tempo de menino - Augusto Palma e Arnaldo Cohin - agora vou falar dos médicos e outros profissionais.

   Cada personagem desses existe em quaisquer comunidades da Terra - o dentista, o médico, o sapateiro, a professora, o gari, o alfaiate, o verdureiro, o leiteiro, o cabeleireiro, o amolador de tesouras e essas pessoas são imortais. São elas que ficam gravadas na memória da gente até a hora da partida para outra esfera espiritual, se assim existirem como profetizam no Tribunal de Osiris.

   Na vida, para aqueles que tem vida longa, ninguém esquece o primeiro cabeleireiro embora possa ter dezenas deles ao longo dos anos. Do primeiro dentista, da primeira professora e assim por diante.

   Serrinha era uma aldeia global (ainda é) como muitas outras. As pessoas nasciam, cresciam e morriam nesse cosmo sem nunca sair dele. Com meu bisavô aconteceu assim, com meu avô também e com meu pai da mesma forma. 

   Todo cosmo se conhecia e sabia o que cada personagem fazia. 'Papagaio' cortava cabelo e tocava banjo; dona Maria de Tihome fazia mingau e vendia na porta do mercado; Sêo Titi Magalhães era o alfaiate e vendia ternos; Sêo João da Ema vendia tecidos; Sêo Sinfroninho, comercializava ferragens; Neném Gonzaga vendia cimento; Sêo Juca, calçados; Sêo Aldemário, ferragens. Ninguém mudava de ramo. Era assim a vida toda.

   Nós, crianças, tínhamos nosso código hierárquico. A gente achava que as pessoas mais importantes eram pela ordem: o prefeito, o delegado de polícia, o padre, o juiz de direito, o sargento do Tiro de Guerra, a (o) professora (r), e depois vinham em escalas menores, o dono da loja de tecidos, o dono da venda, o tocador de violão, o maestro da 30 de Junho, o sapateiro e as figuras populares chamadas de "doidinhos" que viviam pelas ruas. 

   Na escola, a pro Edna Santos ensinava a gente sobre as autoridades. Perguntava: - Vocês sabem o nome do prefeito de nossa cidade, daquele que governa o município? 

   Silêncio total. 

   Ela então falava: - O nome do nosso prefeito é José Vilalva. Doutor Vilalva.

   Repitam: E a gente repetia em grupo: - Doutor Vilalva. 

   - O nome do delegado é? Novo silêncio. 

   - Sêo Euvaldo Campos. E a gente falava: - Euvaldo Campos.

   E o juiz de Direito, alguém sabe o nome? Nada. - É o doutor Artur Machado. 

   Então, os dois médicos do meu tempo de menino foram, Miguel Nogueira e Germano Araújo. Duas personalidades diferentes. Germano era mulato, bonitão, diz-se que algumas mulheres tremiam de desejo quando ele passava, filho adotivo do coronel Nenénzinho; Miguel era um Nogueira, ariano, da elite serrinhense, estatura mediana, uma espécie de visionário da medicina sem mistérios. 

   Adorava vestir-se de terno branco e quando ia para casa, no alto da Bela Vista, um prolongamento da rua Direita em direção a Barrocas, só subia a ladeira de costas. Diz-se que era para evitar problemas cardíacos. Cultuava Ruy Barbosa até mesmo no estilo que usava, quando jovem, um bigode e ternoss barbosianos.

   Menino (a) não ia a médico. Salvo aqueles que tinham alguma doença mais grave. As crianças saudáveis, no máximo, tomavam remédios passados pelos farmacêuticos ou os caseiros - os chás familiares para dores de barriga. 

   Creio que só fui ao médico quando entrei no ginásio e precisei de um atestado. Dr Germano atuava no Posto Médico. E doutor Miguel em consultório na Rua Direita. Quando forneciam um atestado diziam: - Você não tem nada menino. Tá tudo bem.

   Os médicos eram personalidades diferenciadas porque eram raros. O primeiro médico da Serra foi Dr André Negreiros Falcão, década de 1920, e quando eu era menino ele já morava em Salvador mais do que Serrinha. Tornara-se político, líder do PSD. Diz-se que muitos ‘serrinhas’ entraram na Faculdade Bahiana de Medicina, onde ele dava as cartas, com um empurrãozinho de doutor André.

   Havia, também, Dr. José Mota, mas, este atendia mais senhoras.

   Criança têm poucos conhecidos adultos, salvo aqueles que eram amigos dos nossos pais. 

   Eu conhecia os amigos e amigas de meus país: Abdon, Lourinho, Elisio Freitas, Vianinha (maestro da 30 de Junho), Alfredinho do Sax, Nozinho; Celina Carneiro, Zélia e Zefira Paes; Zuleica Freitas e meus avôs, avós, tios e tias. E só. A sociedade era machista. As mulheres não frequentavam os bares.

   Agora, tinha pessoas especiais. Um deles era Sêo Pirulito, o sapateiro. Creio que era o camarada de melhor bom humor da aldeia. Só vivia assoviando e cantarolando. Quando estava perto de entrar no ginásio e fui fazer meu primeiro sapato social preto vernizado em sua tenda cheguei e falei para ele: 

   - Sou filho de Sêo Bráulio da Livraria e vim fazer um sapato para o ginásio. 

   Ele me cubou de cima para baixo e de baixo para cima, assoviando, parecia o personagem Carlitos, de Charles Chaplin, cantarolando (tenho a impressão que era a música Tico Tico no Fubá, de Zequinha de Abreu) e respondeu. 

   - Você é filho de Brálio (muita gente que falava o nome de meu pai engolia o u e fica Brálio) venha cá. Coloque o pé direito aqui nesse papel. E aí riscava o pé com um lápis, media a altura do pé, a parte de baixo; e depois dizia: - Agora coloca o outro pé. E fazia a mesma operação. 

   -  Pode ir embora. Dentro de 5 dias está pronto e você venha experimentar e pegar. Vou falar com seu pai, respondia.

   Os negócios eram feitos assim, na base da boca, da confiança. Sêo Pirulito então falava com meu pai o valor do par de sapatos e ele pagava.

   Passada uma semana voltei a sapataria e encontro-o cantarolando, assoviando. Era um curió dos melhores. Assoviava dobrados. 

   - Vim pegar meu sapato, falei.

   - Venha cá - respondeu.

    Aí me colocou no banco de experimentar sapatos. 

   - Trouxe uma meia? Não trouxe. Use essa aqui. Enfie o pé. Depois, com dedos de sapateiro apertava o bico do sapato e dizia: Tá ótimo.

   Tá confortável?

   - Sim, senhor -eu respondia.  

   Experimente o outro. Bom demais. E lá eu ia para casa com meu par de sapatos para estrear no ginásio. 

   Até então, salvo em momentos festivos, eu só usava sandálias de couro, as populares alpercatas. Ainda não existem as japonesas, hoje, chamadas de havaianas.

   Outra figura que eu gostava muito era dona Maria de Thiome que vendia mingau na porta do Mercado. Morreu recentemente com quase 100 anos de idade. Eu comprava fiado, na conta de meu pai, e ia todo sábado, cedo, na sua tendinha. - Vim tomar meu mingau, dizia todo desconfiado.

   - É o menino de 'Brálio' né?  

   - É sim senhora.

   - Quer de milho ou de tapioca?  

   - De tapioca, respondia.

   Dona Maria então levantava a tampa do panelão protegido com um pano para o mingau não esfriar, enchia um copo dos grandes e dava-me. 

   - Cuidado, tá quente, lembrava e colocava um pouco de canela em pó. Depois, comentava assim que eu dava os primeiros sopros na beira do copo e experimentava o mingau: - Quer um pedaço de bolo?

  - Eu quero sim senhora. 

   Depois que me fartava no tapioca com bolo descia a rua do Mercado até a praça e ia zanzar pela feira livre da Luís Nogueira e do Largo da Federação.

   Lembro também do dia em que fui fazer minha primeira calça comprida na Alfaiaria de Sêo Titi Magalhães na entrada da Rua Barão de Cotegipe. 

   Fui com meu pai. - Vou deixar esse rapaz pra fazer uma calça comprida que vai estudar no Ginásio, disse a Titi. 

   Sêo Titi era igual a meu pai. Econômico em palavras.

  - Sente ali que daqui a pouco vou tirar suas medidas. 

   Eu conhecia os dois filhos de Sêo Titi, o Antônio Carlos Magalhães (boi) e José Emanuel (depois professor de matemática do Ginásio) que jogavam bola comigo no largo da Usina. Casado com dona Alice tinha um monte de filhos e filhas e morava perto de nossa casa, numa rua adjacente ao Largo da Usina.

   Sêo Titi então chamou-me para um reservado de sua tenda - ele tinha uma loja que vendia calças, ternos, cintos, etc - com a oficina no fundo e mandou eu ficar em pé com as pernas discretamente abertas, "como você anda" - disse - pegou uma fita métrica, um caderno, um marcador e mediu minhas pernas, por fora e por dentro. 

   Depois, media a cintura e os quadris. - Pronto, disse ele, pode ir embora que já tomei as medidas e anotava no caderno. - Como é seu nome? É o Tasso não é o Braulinho não, né!

   - É o Tasso, respondi.

   Uma semana depois fui pegar a calça. Uma maravilha. O charme é que tinha um tampa no bolso da traseira e acima do bolso afixado com linha a marca "Alfaiataria Magalhães". O Alfaiataria com pequeno destaque e o MAGALHÃES em caixa alta, letras maiúsculas. 

   A gente tinha orgulho de vestir uma calça com essa marca ir à rua ou ao ginásio com a camisa por dentro para ressaltar a marca. Grife, depois muito usada nos anos 1960/1970 pelas grandes marcas de confecções tanto para homens como para mulheres. Ainda hoje perdura essa prática.

   Outra pessoa que eu também gostava muito era de Sêo Papagaio, o barbeiro tocador de banjo da Tenda de Oficial situada na rua do Mercado em frente da loja de Sêo Valdemar Santana, pai de Dema. 

   Ele parecia com o personagem de Péricles, o "Amigo da Onça", com um bigodinho à moda inglesa, unhas sempre pintadas e cabelo com brilhantina. Era um figuraço. E, de quebra tocava banjo. Creio o único que conhecia no meu tempo de menino tocando um instrumento que era usado pelos músicos que executavam blues em Chicago.

   A tenda era um burburinho. Como todo espaço dessa natureza era onde se sabiam as notícias da cidade, as fofocas, as traições, os calotes e assim por diante. Mas, nós crianças, não entendíamos nada disso. O importante era cortar o cabelo e passar o talco no cangote.

   E "Papagaio" - nunca soube seu nome verdadeiro - era um mestre. Assoviava, cantarolava com o tic-tac da tesoura batendo as asas do aparelho numa velocidade impressionante. 

   Eu também cortei meu cabelo, creio que foi meu primeiro barbeiro (ninguém falava cabeleireiro) com Sêo Vicente Campos, o qual possuía um misto de barbearia e vidraçaria na praça Luís Nogueira. 

   Aparentemente uma coisa não combinava com a outra, mas, funcionava e foi assim que ele criou sua imensa família, com Sidney e Vicentinho, dois dos seus filhos amigos de nossas 'molecagens' de crianças.

   Sêo Vicente fazia parte do time de meu pai, Sêo Titi, Sêo Cosme e Sêo Zé Faustino homens de poucas palavras, mas, práticos, ágeis nos seus ofícios.

   O modelo de corte do cabelo para crianças era único: estilo pimpão. Máquina zero dos dois lados da cabeça, um pouco no teto e pimpão em destaque na frente. O barbeiro também fazia o 'pé' ou cangote.

   Também cortei meu pimpão com Joãozinho da barbearia situada na rua Direita, quase em frente a Farmácia de Sêo Paulino Biêta. Joãozinho era baixinho, barbearia bem simples, diziam as más línguas que ele adora alisar o cangote dos meninos.