Abate religioso é liturgia essencial para o candomblé

Roger Cipó
06/08/2018 às 12:03

A Constituição Federal, por meio do artigo 215, determina que o Estado proteja as manifestações culturais populares, indígenas e afro-brasileiras, e as de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.

No artigo 216, a Constituição Federal determina que deve ser promovido e protegido pelo Poder Público o patrimônio cultural brasileiro, considerando tanto os bens de natureza material quanto imaterial – o jeito de se expressar, ser e viver – dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira.

As práticas afro-brasileiras de religiosidade são patrimônios dos povos tradicionais. Isso, por si só já seria motivo o bastante para que seus ritos e crenças sejam preservados e assegurados, no entanto a realidade de um país racista faz com que direitos básicos como o de alimentação e liberdade religiosa sejam colocados em cheque, com o julgamento do Recurso Extraordinário que tenta criminalizar as práticas litúrgicas de alimentação das religiões negras. O recurso RE494601 é mais uma tentativa de extermínio dos costumes ancestrais africanos preservados nos terreiros de todo o país.

Parte do rito e da vida sagrada-social, o abate religioso é liturgia essencial para o candomblé. Tem como finalidade o culto e a sacralização do alimento comungado. Mais uma das formas ancestrais de conectar fiéis aos orixás africanos cultuados nos territórios. Um direito humano que tem sido ameaçado por ideais fundamentalistas e conservadores.

A sacerdotisa e pesquisadora, Rosiane Rodrigues, comentou: "O fato é que judeus, muçulmanos e os Povos Tradicionais de Matriz Africana realizam o abate de animais da mesma forma e com o mesmo objetivo: tornar o alimento sagrado para consumo dos seus adeptos, de acordo com suas liturgias. Mas, a proposta da Adin é de criminalizar apenas o abate realizado nos terreiros. Isso é uma afronta ao direito humano à alimentação adequada que está prevista no artigo 25 da Declaração Universal dos Direitos Humanos de 1948. Sua definição foi ampliada em outros dispositivos do Direito internacional, como o artigo 11 do Pacto de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais e o Comentário Geral nº 12 da ONU.

'Ao afirmar que a alimentação deve ser adequada entende-se que ela seja adequada ao contexto e às condições culturais, sociais, econômicas, climáticas e ecológicas de cada pessoa, etnia, cultura ou grupo social' (Conselho de Segurança Alimentar, 2015)." [http://www.conexaojornalismo.com.br/…/proibir-a-alimentacao…]

No país que mais exposta carne sacralizada, nas américas, a prática do povo que mais contribuiu para a formação da nação é contestada, por não se enquadrar naquilo tido como correto pela hegemonia. Hegemonia essa que normaliza o fato de os grandes frigoríficos abaterem milhares de animais por minuto, devastando a Amazônia para a produção de gado, e uma série de outras desumanidades, para abastecer um dos mercados que mais consomem e vendem carne, no planeta.

O julgamento do dia 09 de agosto de 2018, não é sobre o abate de animais. É sobre violar direitos previstos na constituição e na declaração dos direitos universais. Sim! A declaração dos direitos humanos prevê e assegura o abate animal religioso, entendendo como prática legal, religiosa e social, para a alimentação e liberdade de crença do povo, em questão. 

O julgamento não é sobre abate animal, pois diversas outros seguimentos religiosos o realizam no Brasil. O Brasil é o maior produtor e exportador de carne sacralizada das américas! 

É sobre o direito de fazer e ser dos terreiros de candomblé e outras manifestações afro-brasileiras. É sobre o estado laico tomado por um pensamento fundamentalista, potencializado exclusivamente pelo racismo religioso e institucional.

[Entenda mais na entrevista do Dr. Hédio Silva Junior: https://www.facebook.com/odarafotografia/videos/2022992001068772/] 

O abate animal religioso praticado nesses espaços deve ser protegido, e não questionado de forma tão desumana. 
Se for questionar, que se questione as ações dos grandes frigoríficos. Que se questione as toneladas de carne sacralizada que foram incineradas no Porto de Santos. Que se questione a JBS. Que se questione as toneladas de Perus produzidos para os natais. Que se questione a carnificina provocada pelos grandes empresários e pelas bancadas da Bala da Bíblia e do Boi. Que se questione a laicidade que se foi há muito tempo e abriu espaço para o terrorismo religioso que hoje toma o senado brasileiro. Questionemos!

Não questione a forma com que um povo tão sofisticado herdou para se cuidar, se alimentar, se manter vivo e promover o progresso de uma nação.

Respeitem o sagrado afro-brasileiro.

[Leia também: http://www.candomblesemsegredos.com.br/o-sacrificio-de-anim… e mais: http://www.candomblesemsegredos.com.br/o-sacrificio-de-anim…]