BISCOITOS FINOS, arte e combate, debates Enearte

Fernando Conceição
25/09/2017 às 19:44
      EM EVENTO – Enearte – que acaba de reunir centenas e centenas de estudantes e artistas vindos a Salvador, Bahia, das áreas de artes de todo o país, os organizadores convidaram-me para falar em duas mesas-redondas.

   Discussões em torno da “arte como forma de resistência”. Numa mesa, em auditório lotado na Escola de Dança da Universidade Federal da Bahia, “resistência nos tempos da ditadura militar”.

  No auditório da Facom-UFBA, também lotado, “resistência indígena, negra e trans”.

   Até agora não sei o porque da deferência dos organizadores, com a qual me senti honrado. O que me leva a comentar aqui, de forma parcial, as impressões do conteúdo dos debates que presenciei nos dois dias.

   O argumento comum que defendi tanto numa como noutra mesa é que não me parece adequado ter a arte como “forma de resistência”.

  Até onde alcança minha ciência dos fatos, na arte existem tão-somente duas opções estéticas, autoexcludentes.

  E isso extrapola os limites artísticos puramente postos, para alcançar o próprio estar no mundo dos indivíduos.

  Esteticamente existe a Arte Integrada, aquela que referenda o status quo: uma arte oficial, chapa-branca. E existe o que chamei de Arte de Combate.

   A arte de combate é a contestatória: no ambiente de domínio da arte integrada, a contestatória é marginal, é negra – no confronto com a chapa-branca.

   A arte que resiste, resiste a algo posto sem necessariamente propor a ruptura. Revolucionário é o combate e este é permanente: não cessa porque, seja o contexto capitalista ou utópico-socialista, o artista nunca se apazigua com nada.

Viver, já disseram, é uma arte: ser contestador na vida é mais que uma obrigação, se se quer ser artista, é uma necessidade de sobrevivência, tal qual beber água, comer pão e respirar.

“Mas a arte tem de ser um posicionamento”, bradou alguém anti-capitalista numa das plateias, emulando a arte do bloco socialista soviético-chinês.

Outro, na mesma toada, exigia uma arte popularmente mais engajada, que fosse à periferia, não a dos museus, a de Molière ou de Shakespeare.

Nesse ínterim dei-me conta das razões do convite para estar debatendo essa temática:

40 anos, completados nesse setembro, “da construção da cidadania” da ex-comunidade favelada do Calabar.
Não fosse a arte como instrumento de combate, os poderosos do dinheiro e da política institucional teriam extirpado a comunidade da área onde se situa.

Contestei os intervenientes. A arte não tem de salvar ninguém, portanto não tem de se posicionar.

A não ser que seja para contestar os poderes estabelecidos – sejam os do capital, sejam os do partido único da “vanguarda”.

O povo popular precisa de Shakespeare. Privá-lo disso, como de Mozart, Picasso ou Jean-Paul Sartre – de forma parecida agiu Mao Tsé-Tung na fase chamada “Revolução Cultural” na China – é reduzi-lo a marionete.

Oswald de Andrade (1890-1954) disse que é preciso oferecer ao povo biscoitos finos.

Ivetes Sangalos, Paulo Coelho, literaratura de facebook e quejandos são distrações estéticas obtusas.
Fugindo desse viés, um estudante gaúcho fez a pergunta-chave no meu entender. “Como alguém, tendo tantas fragilidades, pode resistir a esse contexto?”

De fato, o contexto é e sempre foi difícil para quem é ou se deixa sentir-se frágil. Nietzsche disse que a maioria de nós vem e sai da cena sem deixar vestígios da existência. Ou seja, os fracos são desimportantes para o projeto maior da Natureza.

As outras três pessoas ao meu lado na mesa, a partir principalmente da resposta de uma colega docente, que foi minha professora de dicção em matéria que como aluno de graduação peguei na Escola de Teatro, indicou ao aluno que a saída é “pelo coletivo”.

Os que se sentem frágeis devem juntar-se em coletivos de “resistência”, pois em coletivo a luta se fortalece.

Contestei, alegando que coletivo também oprime o que há de indivíduo no sujeito.
Falei de cátedra: pessoalmente, fui expulso de todos os coletivos dos quais um dia participei. Até mesmo de um partido político que tem “trabalhadores” na sigla, de onde saí preso num camburão chamado por seus dirigentes. [clique e saiba]

Vontade é força, assim falou Zaratustra. O fragilizado tem como única alternativa à barbárie a vontade do conhecimento, o que inclui a busca do auto-conhecimento.

Indiquei ao jovem aluno de artes o desafio e a dureza do conhecimento. Nos livros e na experiência. Procurar e humildemente ouvir os mais velhos, os mestres, não apenas o que está nos livros das academias.