A MÁQUINA DO TEMPO de Bluma Santana e a resistência da vida

Bluma Santana
24/12/2016 às 10:12
De que adianta o choro se o riso acaba me alcançando mais cedo ou mais tarde? De que adianta o planejamento se não há garantias? De adianta se encaixar na vida, na foto, na ideologia, se no final - caso eu goze do privilégio da velhice - a correria terá se tornado um inconveniente engraçado para mim? Eu encontrei sentido apenas nos hábitos absurdamente simples. 

Como no caminhar até a padaria já não esperando encontrar (e cantar) O Último Romance na fila do pão. Como constatar o quanto a cidade mudou sem me revoltar nem achar o máximo as pichagens dos muros de concreto. Como já ter a decência de não classificar mais ninguém como vândalo ou como artista, como louco ou gênio. Preconceituoso ou libertino. Mesmo porque, quase não há uma linha que divida os extremos. No fundo, as coisas, elas se completam mesmo.

Eu me acostumei a escrever com o barulho. A existir poeticamente em meio à tantas solicitações e cobranças, que elas próprias se tornaram um enclave poético nas minhas cenas. Eu finjo mesmo, que tudo faz parte de um enredo cujo final será digno. É uma maneira de alienar sem me alienar. De manter o senso prático e não endurecer. Como se chama isso? É uma resistência, uma defesa ou uma virtude? E de que adianta ela, também? Mas no íntimo, eu sei.

De tudo isso adianta pelo único e verdadeiro bem durável que nos resta: a memória. Máquina do tempo capaz de criar um tipo de material audiovideo-sensorial: um filme cuja finalidade é a de evocar as nossas próprias sensações. E então teremos tentando, saltado, caído: tudo por isso. Pelo direito ao deleite de repassar e rebobinar. Infinitamente, na nossa complacência. 

E para chegar à consciência de que Chaplin estava certo quando dizia que ninguém nessa vida passa sozinho, porque mesmo quando todos tiverem ido embora, na mais parca solidão, eles não terão ido embora. Houve transformação mútua. E talvez essa - a emocional e cravada - seja a verdadeira permanência.