Ataques a Paris não são loucura; são realpolitik

Fernando Conceição
10/01/2016 às 11:37
CITO HANNAH ARENDT: “Ninguém que se dedique à meditação sobre a história e a política consegue se manter ignorante do enorme papel que a violência desempenhou sempre nas atividades humanas” (Sobre a Violência, 1969 [2014], p. 7).

O colonialismo, de quaisquer naturezas, pós ou pré-Cristoforo Colombo – portanto a própria realidade das Américas e de um país denominado Brasil, a existência dos brasileiros em suma -, é causa e consequência de violências.

Sobre a violência bruta como instrumento de causas políticas válidas, ainda que o moralismo de batom a condene, Arendt não está sozinha.

George Sorel, na esfera do sindicalismo socialista, e Frantz Fanon (1925-1961) em Os Danados da terra – justamente no campo da luta anti-colonial – pregam o seu uso redentor.

A causa judaica, que levou a Assembleia Geral da Organização das Nações Unidas em 1948 a declarar a construção do Estado de Israel, foi precedida, durante ao menos cinco décadas, não apenas por gestos diplomáticos ou orações a Javé.

Os radicais sionistas abrigados em grupos como Irgun e Haganah o que mais fizeram na luta foram ações que os tipificavam como terroristas. Que, alcançado o propósito, se transmudaram em heróis venerados pelas autoridades mundo afora.

Gasta-se muita tinta, papel e horas de discussões em toda parte para atacar as recentes ações radicais sobre a França.

Para condenar os ataques surpresa de 13 de novembro, em Paris. Que fecharam um ciclo iniciado a 7 de janeiro de 2015 contra jornalistas do Charlie Hebdo, pasquim satírico parisiense.

Ataques apontados por vozes indignadas como atos de um grupo terrorista de árabes radicais, que lutariam contra tradições caras ao Ocidente – como a democracia, a liberdade, igualdade e fraternidade.

Princípios pelos quais os franceses, no século XVIII, fizeram uma sangrenta revolução. Condenada veementemente à época por gente séria, liberal, a exemplo de Edmund Burke (1729-1797).

Reivindicada a autoria dos eventos pelo autodenominado Estado Islâmico no Iraque e al-Sham (no Levante), ISIS, na sigla em inglês, a tal da “consciência ocidental”, sem esconder sua pretensão de superioridade perante as demais consciências, grita.

O Isis seria um bando inconsequente de malucos que age por uma causa inaceitável, impossível, destituída de sentido. Porém, essa visão do Estado Islâmico é completamente equivocada.

A condenação automática das táticas que o Isis tem utilizado é puro simplismo. Reação moralista que não encontra guarida na marcha da história terrena.
Cartaz de caça aos "terroristas" que a 22/07/1946 explodiram com bomba o hotel Rei David, quartel-general do governo britânico em Jerusalém, matando ao menos 91 pessoas; os "procurados" depois se tornaram os maiores líderes da constituição do Estado de Israel em 1948
Cartaz de caça aos “terroristas” que a 22/07/1946 explodiram com bomba o hotel Rei David, quartel-general do governo britânico em Jerusalém, matando ao menos 91 pessoas; os “procurados” depois se tornaram os maiores líderes da constituição do Estado de Israel em 1948

Cito Hannah Arendt como intelectual de peso e como autoridade judia, que teve de fugir da Alemanha nazista para ser bem-acolhida nos Estados Unidos da América. Não sem controvérsia da própria comunidade judia, que tentou desacreditá-la principalmente depois que escreveu Eichmann em Jerusalém – Um relato sobre a banalidade do mal (1963).

ARTIGO DE Audrey Kurth Cronine para a acurada revista Foreign Affair, de março/abril de 2015, já alertava desde o título: “ISIS não é um grupo terrorista: Por que a estratégia de contraterrorismo não vai parar a mais recente ameaça jihadista” [clique para ler].

Cronine, professor e diretor do International Security Program da George Mason University (U.S.), faz distinções fundamentais para se entender o que é o Isis e a al-Qaeda, de que o Estado Islâmico originalmente descende.

Ele não é o único estudioso do tema que há tempos já concluiu: não dará certo a forma como nações ocidentais, a exemplo de Rússia, Estados Unidos, França e seus aliados, mesmo o Iran e Syria, estão enfrentando o Isis.

Tais países declararam guerra ao Estado Islâmico, depois de alguns darem armas a seus militantes na luta para derrubar o astuto mandatário Bashar al-Assad, da Syria. Que, a alto custo de uma guerra civil, equilibra-se até hoje no poder. Talvez porque, com ele fora, a coisa poderá piorar ainda mais na região, principalmente para as minorias étnicas e religiosas que ali coabitam.

Seu principal lider, Abu Bakr al-Baghdadi, é descrito como um homem bem-educado. Possui uma graduação, um mestrado e um Ph.D. De forma alguma é um louco ou doidivinas. Rompeu com al-Qaeda, que o combate numa coalizão que junta xiitas, sunitas e grandes potências mundiais.

O ataque ao hebdomadário que agora completa um ano, cobrou a vida de 11 vítimas. No caso, vistas como inimigas do profeta Muhammad. 

Os ataques de novembro em Paris – não os primeiros e, possivelmente, não os últimos – resultaram no assassinato de 130 pessoas que se divertiam em cafés, restaurantes e num show de uma banda de rock metal – além da tentativa frustrada no estádio de Saint-Denis, arredores da capital francesa, que levou à morte três militantes-suicidas.

O Isis quer construir um califado, restaurando inclusive a área de domínio árabe que ia do Oriente Próximo à toda península Ibérica (incluindo Espanha e Portugal) durante séculos na Idade Média.

Suas forças já ocupam territorialmente grandes áreas ao norte do Iraque e leste da Syria. São bombardeadas há mais de um ano pela “coalizão ocidental”, recentemente incluindo Rússia, França, Inglaterra, Estados Unidos e até mesmo a Alemanha. Como querem que o Isis reaja?

Os analistas independentes são unânimes: é improdutiva essa estratégia da coalizão. Porque os guerreiros e guerreiras do Isis – a maioria, jovens e adolescentes bem treinados – estão já dentro dos territórios dos países que os tomam por adversários. Hibernados, à espera de um comando.

Se o Ocidente não negociar, é possível que o Isis continue com suas ações, matando gente por toda parte. Brasil, nas Olimpíadas de junho, não está imune.

O Isis está em locais de grande produção de petróleo e outras mercadorias. Interessa aos empresários capitalistas “ocidentais” fazerem negócios com seus líderes, transacionando armamentos e estratégias.

Mesmo sem alcançar o restabelecimento da grande área dos impérios islâmicos da era medieval, ao menos devem se fixar onde já estão. O mapa do Oriente Médio terá de ser refeito, quer queira ou não o Ocidente. A realpolitik impõe que ambos os lados cedam.