Literatura
Rosa de Lima
29/11/2022 às  09:07

ROSA DE LIMA ANALISA LIVRO ESCRAVIDÃO VOL 3, DE LAURENTINO GOMES

Rosa de Lima é comentarista de literatura do Bahia Já


  A impressão que tive ao concluir a leitura do volume III de "Escravidão", por Laurentino Gomes, narrativa que compreende da independência do Brasil à Lei Áurea (Globo Livros, 591 páginas, 2022, R$55,00) é de que se trata do mais politizado dos três livros não só porque a campanha abolicionista se travou mais no campo político da Câmara e do Senado embalada pela imprensa e pelos movimentos revoltosos - do que a partir de um levante organizado pelos escravos; e também porque o autor se posiciona pessoalmente entendendo que, concluído o trabalho, "já não tenho mais dúvidas: os negros brasileiros, tanto quanto os indígenas, foram e continuam vítimas de um processo sistemático de genocídio, na forma definida por Abdias do Nascimento nas páginas iniciais do livro "O Genocídio do Negro Brasileiro".


   E num segundo plano, o autor faz observações adobe a questão da memória identitária - ainda carente de estudos mais aprofundados. Ou seja, no pós-escravidão, nada se fez na República para amparar os escravos, sobretudo no campo social de reintegração à sociedade "e a população negra e afrodescendente seria vítima de outra espécie de abandono, que tentaria privá-la de sua identidade" cujo objetivo era "apagar ou reescrever a memória da escravidão e das raízes africanas brasileiras".

  Laurentino comenta que o genocídio foi real e segue adiante ao adicionar pimenta na moqueca, levantando a lebre sustentada em algumas teses de que a escravidão brasileira teria sido branda, "patriarcal e benévola" quando comparada com a dos Estados Unidos e afirma que essas teses não se sustentam e a cada dia os historiadores vão desnudando-a e colocando em seu devido lugar na história.

  A instalação da República com o marechal Deodoro da Fonseca à frente - doente e monarquista convicto - e depois o regime ditatorial de Floriano Peixoto mostrou que os cafeicultores do grande eixo escravista daquela época, final do século XIX, situado sobretudo em São Paulo e Minas Gerais se rearrumaram mantendo um regime de escravidão assalariada.

  Não fica claro para os leitores se essa não-ação de socorro aos ex-escravos por parte dos republicanos militares e civis, já com Prudente de Moraes e Nilo Peçanha, se isso se deu por ausência de uma política pública efetiva dessas autoridades; ou se o movimento abolicionista não teve uma sequência relutante, além da carência de organizações dos próprios negros, ainda em fase embrionária.
  
  Este terceiro volume de "Escravidão" é o melhor dos três livros exatamente por alertar para essas constatações e Laurentino, com base em trabalho bem documentado com citações de vários autores e enumerações de casos e mais casos - de vários ângulos - oferece aos leitores e ao Brasil um trabalho (e para entender todo o contexto é preciso ler os 3 volumes) que serve de modelo para manter a luta por uma reparação aos negros e afrodescendentes com permanente chama acesa, pois ainda tem muita coisa a ser feita.
  
  Outro ponto relevante abordado pelo autor é como se processava o tráfico negreiro a partir do Continente Africano e quais eram os principais agentes desse comércio, com destaque para o mulato baiano Francisco Félix de Souza "o maior e mais famoso traficante que levava escravos para o Brasil na primeira metade do século XIX" e que tinha como parceiro nos negócios o rei Guezo, do Daomé, poderoso estado militar escravista africano. O autor enumera outros atores negros e reis africanos que se envolveram até o pescoço no tráfico, em diferentes países da África.

  Esse é um viés pouco abordado pelos historiadores brasileiras os quais, via de regra põem a escravidão nas costas dos portugueses, o que, em parte é uma verdade, porém não estivessem sozinhos nesta jornada e sim existia toda uma organização que envolvida outros países incluindo os Estados Unidos, a Holanda e a até a agentes ingleses 

  Mais um ponto que vimos como relevante neste volume é a luta abolicionista em especial com destaques para quatro personagens - Joaquim Nabuco, Luis Gama, José do Patrocínio e André Rebouças - as revoltas dos negros neste período, hoje, tão desprezados pela comunidade negra como se o ato final da escravidão promulgado pela princesa Isabel não tivesse todo um caldo de cultura imenso, incluindo a guerra do Paraguai e ações que se desenvolveram no Congresso Nacional. Hoje, desprezam - em parte - essa história, inclusive a Revolta dos Malês e a Conjuração Baiana de 1789, focando mais em Zumbi dos Palmares e no 20 de novembro.

  Portanto, o livro de Laurentino não despreza nenhum desses focos e mostra aos leitores a realidade como ela se apresentava naquela época do final da escravidão (formal) e da mudança do regime Imperial para o Republicano. Abordagem excelente e profunda. Para estudiosos da matéria o autor acrescenta a vasta bibliografia que consultou para realizar o seu trabalho.


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