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23/09/2016 às 11:14

Padre Sadock, o meu segundo pai na sua hora da paz

Devo a ele meu primeiro emprego – precisava trabalhar para ajudar no de comer em casa – no Banorte

ZédeJesusBarrêto

  Morreu o monsenhor Gaspar Sadoc da Natividade, o eterno Padre Sadoc, primeiro sacerdote da Igreja Católica de pele preta dessa ‘Roma Negra’, um dos grandes e derradeiros ícones de nossa baianidade, o maior orador sacro que ví, oratória de Vieira, pura emoção e sabedoria. 

   Culto, professor de História, um padre na acepção da palavra. Simples, vida austera, desapegado, antenado com as coisas desse mundo e sobretudo um homem de fé, exemplo de crença absoluta no Cristo, em Maria e na humanidade, suas crenças maiores. 

   Gaspar Sadoc nasceu em Santo Amaro da Purificação há cem anos e formou-se no antigo Seminário de Santa Tereza, onde hoje está o Museu de Arte Sacra. Foi um exímio jogador de bilhar e um clássico zagueiro. Gostava de futebol e torcia pelo Vitória. 

   Foi vigário da igreja de São Cosme e Damião, na Liberdade, construiu o templo de São Judas Tadeu, em Quintas, marcou época como pároco da Igreja de Nossa Senhora da Vitória, foi Vigário Geral da Arquidiocese de Salvador e um dos membros mais influentes da Arquidiocese Primaz do Brasil desde os tempos do cardeal Eugênio Salles, passando por Dom Avelar Brandão Vilela, Dom Lucas e Dom Murilo. 

   Um homem de diálogo aberto mas firme em suas convicções. Tinha um jeitão conciliador, uma postura aparentemente conservadora mas era um revolucionário. Quando no começo da década de sessenta o Papa João XXIII abriu as janelas de Roma para o mundo, pregando a opção pelos pobres e o ecumenismo, ele já tinha feito na prática essas opções sacerdotais e de vida. 

   Tinha carinho pelas pessoas humildes, defendia as comunidades dos terreiros, lutou pelas negras da Irmandade de Nossa Senhora da Boa Morte em Cachoeira. Ela sabia do sofrer do povo, da gente de cor, até porque sofreu também discriminação por ser negro, tanto nas ruas como dentro da própria comunidade eclesiástica.

   Pregava pela justiça, pela igualdade entre os homens, pela paz de Deus. Não gostava de política partidária mas nos tempos mais duros da ditadura militar abriu as portas do Palácio da Sé para evitar que estudantes fossem massacrados pela repressão policial. Ao lado de Dom Avelar deu guarida a perseguidos, articulou para salvar vidas e salvar gente das torturas, sempre ao lado dos mais fracos e desprotegidos. 

   Assim era Padre Sadoc, um homem bem humorado, crítico, sábio, e de coração imenso. Fui seu seminarista, ele foi para mim um segundo pai, um exemplo, um ombro amigo. Serei grato até a eternidade com sua solidariedade, em todos os sentidos, quando em 1964 tocaram fogo na Feira de Água de Meninos e meu pai, um pequeno feirante, perdeu tudo o que possuía. 

   Devo a ele meu primeiro emprego – precisava trabalhar para ajudar no de comer em casa – no Banorte. Era amigo do gerente, que frequentava a Igreja de São Judas. Devo a ele o meu destemor de falar em público: um dia de quinta-feira santa, o templo lotado na missa, ele me passou o microfone na hora da homilia. Eu tinha uns 16 anos. Tenho amor de filho por ele. 

   Não dá pra esquecer suas pregações de hora e meia, o Bomfim lotado, as pessoas extasiadas a ouvi-lo. Jamais vi alguém encher a Catedral Basílica, sobrando gente pelo Terreiro de Jesus, apenas pala vê-lo no púlpito a falar das vicissitudes humanas e da importância do sagrado. Para sempre guardadas em mim as lembranças de nossas missas rezadas pelas periferias, as idas e vindas no fusquinha velho, ele ao volante, o afago deles com as pessoas. 

   A derradeira carona que lhe dei, quando o busquei em casa para celebrar os 80 anos de minha mãe. Na missa, dirigiu-se a mim e me pôs na boca a hóstia consagrada. Depois comentei: ‘Mas padre, faz anos que eu nem confesso meus pecados!’ E ele: ‘Meu filho, Deus é pura Misericórdia’ ! Viva o Papa Chico. 

   A Bahia perdeu neste começo de primavera um dos seus mais ilustres filhos. Uma luz solar que tornou-se lamparina. Chama que não apaga. Está agora bem ao lado de Mãe Zuite, que também o amava. 

   Chegou sua hora de paz, do encontro com o Criador, o nosso Deus da Misericórdia. A benção Padre Sadoc, meu coração está apertado, mas sem tristezas. Você não merece lágrimas. Louvo e agradeço. O Céu está feliz em recebê-lo. Lá do alto, não nos abandone. 


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