Cultura

DENTADURA DO LUBI DE SERRINHA AMOLECEU COMENDO UMA COSTELA DE RAPOSA

Como a prótese dentária do Lubi amoleceu ao comer uma costela de raposa de cativeiro com alecrim e cansanção
Tasso Franco , da redação em Salvador | 13/09/2020 às 07:23
Zorth o alfa supremo da mata flamejante
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  O jornalista Tasso Franco publicou neste domingo, no wattpad, a 24ª crônica do seu livro "O Lobisomem de Serrinha, a nuvem de fogo e o fim do mundo" sobre sua prótese dentária, apresenta seu substituto na mata flamenajante, Zorth, e ganha beijinhos da Ester. Leia crônica abaixo e as demais no wattpad.
 
   A DENTADURA DO LUBI AMOLECEU COMENDO UMA COSTELA DE RAPOSA


   Dia pandêmico, de chuva fina no roçado, a Ester Loura, minha querida esposa, aprontou uma costela de raposa de cativeiro temperada com alecrim e cansanção, acompanhada de arroz carreteiro, molho lambão e farinha de guerra e cai de boca com vontade. Não era para menos. Há 180 dias isolado diante do coronavirus a comer arroz integral, salada, brócolis, peixe e macarrão 'lombriga' quando me deparei com a delícia, tive que desfrutar.

   A vontade foi tal, o ímpeto, a gulodice, que, no abrir e fechar a boca, diz-me a madame que estou mastigando feito rato, roendo, senti um movimento diferenciado na arcada dentária superior esquerda, parecia um avalanche no Himalaia, parei de mastigar, amarelei, fechei os olhos tal o desconforto, a Ester socorreu-se com um cachação nas costas pensando que estava engasgado, engoli o que tinha que engoli da costelinha da raposa, respirei fundo e disse:

  - A prótese amoleceu e está cair. 

  Equilibrei-me na cadeira e com o dedão esquerdo pressionei-a para ver se chegava ao lugar, em vão. A Ester correu à sua necessaire de manicure pegou um alicate pontudo, mandou eu abrir a boca e tentou colocar a prótese em seu devido lugar, nada conseguindo.

  Balbuciei para o alicate não apertar meu lábio e falei: - Só quem resolve é o doutor Mantídio. Vamos ligar para ele e marcar.

  Até o dia da consulta, fiquei com a prótese cai não cai, só comendo comidinha de bebê e papa de véi. No dia combinado com o doutor dentista compareci ao seu consultório, ele tentou colocá-la no devido local e também não conseguiu a contento.

  Aduziu: - Só uma nova Sêo Lubi. Vou retirá-la, fazer uns procedimentos na base do implante, na estrutura metálica, e dentro de 15 dias retorne para vermos se conseguimos encaixá-la. 

  Perguntou-me o nobre doutor se fazia-me falta a prótese, pois ficaria com a cancela aberta por duas semanas, se não impediria que fosse à caça na Mata Flamejante de minha alcateia.

  Respondi: - Estou completamente aculturado aos sapiens comendo processados e integrais do F. Barbosa, do Chama. Só pratico a transformação em momentos especiais para saudar a mãe Lua, datas cívicas importantes, e nada mais. Foi-se o tempo em que, numa noite de lua crescente, eu e os minos e minas, Zorth, Theo, Zaram, Zeúk, Koosa, Beny e outros caçávamos 6 perdizes, duas jaguarandis, 4 raposas e 2 gatos do mato, em noite de lua crescente.

  - Entendo, a idade é um problema, a velhice - comentou o jaleco branco.

  - Estou a completar 282 anos que aqui cheguei, na Serra, época do Bernardo da Silva, e trago 400 anos das terras da Hungria, beirando, portando 682 anos. Sinto-me forte, espada, lembrando-lhe que os nossos ancestrais do Norte gelado vivem, em média 900 a 1.000 anos de idade. 

  - Passaste o bastão para o primogênito da alcateia e aposentaste o dardo, kkkk.

  - Engana-se na segunda observação. Na primeira, acertaste, agora é quem comanda a alcateia; na segunda, o dardo segue como uma rocha. Hoje, a Flamejante está sob o comando do meu primogênito o alfa original Zorth, sétimo na linhagem da nobreza transilvânica, supremo, casado com a Zaram, de linhagem libanesa e moram por lá na mata da região serrana, em nosso alpes serrinhense.

  - Muito bom, contato permanente com a natureza, amoleceu o doutor.

  - Voltarei em 15 dias. Cumprimentei-o com o cotovelo e parti.

  E assim voltei, prontamente, e o jaleco branco tentou de todas as formas encaixar a prótese e nada. 

  - Só uma nova, disse. V. Exa. irá ao Odonto Serra Imagem fazer uma radiografia da arcada com a Dra. Vanezza para eu retirar esses pinos com segurança e colocar uma nova em folha, moderna, de cerâmica.

  - Mal pergunto ao nobre quanto me custaria esse trabalho?

  - Ao amigo, ao confrade, vou cobrar 20 guarás.

  Tomei um sustou sentado na cadeira do doutor e só não cai porque cadeira de dentista é coisa de nave espacial. 

   Respondi: - Ora, meu jaleco, ganho 19 guarás ao mês de aposentadoria, como fazer?

  - Parcelamos em dez vezes para o amigo com uma modesta entrada. Não pesa...não pesará em seu orçamento... sai na urina.

   -Vou consultar a esposa e conversaremos.

  - Tome logo aqui a requisição da radiografia. 

  Consultei a Ester e disse-lhe, pensando em não colocar a nova prótese, que já estava acostumando-me com a cancela aberta, que o doutor havia cobrado 20 guarás para fechá-la o que era um impeditivo para meu caixa.

  - Taí, estou mastigando bem com essa porteira aberta, comentei.

  - Você vai colocar a prótese, sim, porque boca de véi pra se beijar já não é agradável, imagine boca de véi murcha. Ou bota ou meu doce mel, meus lábios com batons de Itália aí não encostam.

   Diante de tal ameaça restava-me pouca alternativa.

   - E como pagar ao doutor, nessa crise da pandemia? Inquiri.

  - Dá-se um jeito. Salvou-lhe o doutor Popó, que Deus o tenha, o qual antes de ser chamado ao céu deu-me um talão com receitas de ciales, senão seriam duas próteses a colocar, na boca e naquele outro local. Verias o que é gasto, pois, a peniana seria feita no Hospital Sirio Serra Beirute e lá tudo é caro.

  Recolhi a minha insignificância e fui fazer a radiografia com a Dra Vanezza no Serra Imagem.
Consultório de ponta, em vidro e aço escovado, atendeu-me uma secretária de boa formação intelectual com avantajado derriere e nariz de árabe.

  - Sêo Lubi, em instante o senhor será atendido, conforme a hora marcada.

   E fui, no combinando, entrando numa sala de Raio X, a doutora um espetáculo, xoxo, isto é, show, recebeu-me com luvas de pelica e álcool em gel, mandou eu vestir um jaleco de chumbo e conduziu-me para um aparelho parecendo desses de oculistas, em pé. Em seguida, pediu que mordesse um pino verde que piscava à minha frente:

   - Morda esse pino aí para deixar a arcada firme e eu possa fazer a rádio, disse.

   A exuberante à minha frente, cheirosa como os antulhos da Flamejante, imaginei que aquele pino era outra coisa, um bicudo, e obedeci a digna senhora.

  - Agora vou sair da sala e o aparelho registrará a imagem passando a esquerda e a direita, como um limpador de vidro de carro. Aguente firme.

  A porta foi fechada, a doutra saiu e um zunido passou pra lá e pra cá.

  Em instantes, voltou e disse: - Tá liberado. Fale com a secretária para combinar o recebimento da imagem.

  Falei com a nariz de árabe, ela tomou-se logo uma garoupa e eu disse: - Que dia passo para pegar.

  - Sêo Lubi, a Ondonto Serra vai mandar para seu e-mail, para seu zap. Esse negócio de pegar é coisa do século passado, da época do doutor Cohin.

  Recolhi a minha ignorância e parti.

  Quando cheguei em casa a Ester perguntou como fora. Narrei o episódio. 

  - Ainda bem, surdo com estás, não confundiste pino com pinto, kkkk

  - Ris da miséria alheia. Só irei ao doutor Mantídio, depois que conseguir os 20 guarás. Lembro-lhe que para comprar um tênis novo tive que passar um raio das moças a dois reais, uma tartaruga, para cada vivente. Agora, preciso de 4 mil, 20 guarás, e não vou passar rifa com bilhete a 40, dois micos dourados.

  - Está na hora de você procurar seus amigos ricos, o conselheiro Souza, os doutores Zéu, Maurício de Tebas, Sampaio, Sanches, é tanto doutor que me atrapalho.

  - Não vou ocupar essas autoridades com bobagens.

  - Então, vamos vender a Mimosa, cujo valor corresponde a 70% desse valor da prótese.

   - A Mimosa, nossa melhor vaca leiteira. jamais!

   - Pensei melhor. Pagamos a entrada com nossas economias do cofre porco de barro e da meia que guardas embaixo do colchão, e o restante pagamos em feijão e leite. Os preços da cesta básica dispararam e isso ajudará o doutor Mantídio a alimentar o pessoal de sua clínica.

  - Taí essa é uma ótima ideia. Vou ligar para ele e propor. Estouremos a barriga do porco.
Pegamos um martelo e o porco de barro rachou ao meio. Contamos as nicas e deu 197 reais. No cofre da meia conseguimos mais 1.900 reais. Não mexemos no cofre do bolso do jaquetão.

   Liguei para o jaleco branco e fiz a proposta: 2.2 mil reais de entrada, 200 litros de leite e 2 sacas de feijão. O jaleco relutou. Apelei. fiz um discurso patriótico, citei o messias, conclamei a democracia, aos tempos difíceis em que viemos, e senti que o doutor amoleceu e foi as lágrimas. 

  Topou nossa proposta.

   Exultei com a Ester: - Vou fechar a cancela.

  - Quando voltares, boca arrumada, darei um selinho com meu Kiko milano vermelho.