Cultura

NO MEU TEMPO DE MENINO, A BOMBA ERA NOSSO MAR E A LIXA PRAIA COM BABAS

Nadar com Tarzan nadava no cinema era um desejo coletivo da garotada do meu tempo de menino
Tasso Franco , da redação em Salvador | 12/08/2020 às 07:39
No tempo em que, no campo da Lixa, a bola caia no nosso mar
Foto: DIV
   O jornalista Tasso Franco publico nesta quarta-feira, 12, a 6ª crônica do seu livro "No Meu Tempo de Menino", Serrinha (1945/1957) no aplicativo literário wattpad. Abaixo v ler a crônica de hoje e as demais no aplicativo literário wattpad.

 

      A BOMBA ERA NOSSO MAR

  No meu tempo de menino, a gente tinha o maior fascínio pela Bomba, açude construído pela Leste Brasileiro para abastecer o sistema ferroviário incluindo as "Marias Fumaças", as locomotivas a vapor da época. Uma delas, inclusive, a de número 500 explodiu na Estação do Trem causando o maior alvoroço e ferindo algumas pessoas. Pedro Baleiro ficou mancando o resto da vida. Sua perna foi atingida por um parafuso. 

    A Bomba era o nosso mar. Como Serrinha foi o lugar que Judas deixou suas botas diz-se que Deus falou assim: - Lá não vou colocar nem um braço de mar, nem um rio, nem uma lagoa.

    Daí que água, para os serrinhenses, era uma coisa divina (e ainda é), caída dos céus e a cidade teve que criar seus próprios açudes: o Gravatá; o antigo Tanque da Nação onde construiu-se depois o mercado municipal; o tanque das Abóboras, no governo de Joaquim Hortélio; o tanque da Sericicultura; o tanque de João Devoto, o riachinho do Tiro de Guerra e o poço de Sêo Lorens, entre outros.

   Mas, nada era tão fascinante quanto a Bomba por sua dimensão, por sua beleza, por sua barragem, tudo muito extenso, daí que a gente achava que era nosso mar embora nenhum de nós conhecêssemos o mar verdadeiro.

   As histórias que rolavam sobre a Bomba no meu tempo de menino eram alarmantes: que havia um lobisomem que morava embaixo do pontilhão, que tinha jacaré e este devorou um menino com sua bocarra, que um peixe enorme virou uma canoa de um pescador, que a enxurrada da trovoada de novembro foi tão forte que arrastou um boi. A gente ficava com cada boteco de olho enorme ouvindo essas lendas e acreditando.

   Tanto que eu e meus amigos do Largo da Usina e adjacências aprendemos a nadar no riacho do Tiro de Guerra que ficava atrás do Posto Fiscal da Transnordestina, hoje, Ponto do Araci. O riacho era formado pelas águas que desciam do Morro do Fundo lá na altura da Rua da Rodagem, seguia pelo sitio de Oséas e, na baixada, formava um tanque raso sem perigo.

   Primeiro no estilo 'cachorrinho' segurando as mãos numa pedra que tinha na beirada e batendo os pés. Os professores eram os meninos que já sabiam nadar. Depois, soltando as mãos e nadando feito um cachorro. Esse era um primeiro estágio.

   Quando chovia bastante na Serra, o que era raro, o riacho descia forte e ia desaguar na Bomba. E, neste açude, havia dois sangradouros: um que dava em direção a Coité; e um outro, menor que dava para o atual arruamento dos Treze. Aí formava um tanque maior do que o Riacho do Tiro de Guerra, onde a gente aprendia a nadar de braçada, feito Tarzan.

   Nas matinés do cinema passava o seriado de Tarzan e a gente vibrava com o gringo das selvas porque ele além de matar um leão enforcando-o, nadava mais rápido do que um jacaré. Curioso é que ele era branco na terra de africanos. Pronto: nosso treinamento no sangradouro da Bomba era nesse modelo de Tarzan, cabeça pra fora d’água e braçadas. Tinha meninos que caiam na água dando gritos iguais aos de Tarzan.

   O terceiro estágio era pra quem já estava craque no nado e o desafio era nadar na Bomba, pular do pontilhão e se possível atravessar a Bomba a nado. Poucos faziam isso.

   Nos arredores da Bomba tudo era mato, sítios, pequenas fazendas e o bairro se limitava a Rua 1º de Janeiro (hoje Bernardo da Silva) e becos. A rua da Bela Vista não existia, o bairro da Santa também não existia e a gente atravessa esses locais por trilhas dentro do mato correndo de alguma vaca ou temendo cobras. Ninguém morreu por isso.

   Minha mãe ficava apavorada com minhas aventuras temendo que eu morresse afogado e brigava bastante comigo. Meu pai, de vez em quando dava umas cintadas nas minhas canelas. - Você estava no açude - dizia ele - e a madeira cantava.

   A gente mesmo se denunciava porque a água dos tanques e da Bomba com o sol deixava marcas no corpo. Pra disfarçar e chegar em casa limpo, a gente se banhava com água de tanque de cimento ou passava cuspe nos braços e nas pernas. Não adiantava nada. O cabelo também ficava desalinhado e crespo. Denunciava logo.

   Dia desses os meninos do Encontro dos Amigos de Serrinha me falaram em fazer um projeto conjunto para salvar a Bomba, assim como a Conder fez com a Lagoa Grande em Feira. A ideia é boa. Faltava eu visitar a Bomba para ver como ela se encontrava hoje.

   Em 2016, visitei e vi que a Bomba acabou. Virou um pinicão. O antigo Riacho do Tiro, hoje, área do Bairro da Santa, está todo urbanizado e o esgoto com coco e tudo mais desce pela baixada de doutor Samuel e desagua na Bomba.

   Não há mais água limpa na bomba. Há pequenos pastos, uma touceira imensa de capim, o Campo da Lixa, invasões de habitações por todos os lados, e até o local da antiga barragem virou rua calçada e com uma capela para São Pedro Apóstolo.

   Do outro lado, quem vem do Bairro Nossa Senhora de Fátima, antiga Coruja, mais e muitas casas. Os Treze é pequeno bairro e a linha do trem está quase silenciosa porque passam poucas composições movidas a diesel da Atlântica e há ruas e invasões todos os lados.

   Zé Brito, 87 anos, mecânico de tratores com oficina perto da Bomba diz que teme por uma trovoada e que possa afetar as casas situadas em cima da antiga barragem. Curioso: depois da barragem já existe uma praça urbanizada Lúcia Adelina de Jesus com parquinhos para crianças e próximo está a Barbearia do Beto e outras casas comerciais.

   ​Então, a Bomba se tiver que fazer um projeto seria de um aterro com saneamento. No mais ficam só as lembranças do meu tempo de menino. É uma pena que destruíram também nosso mar da Serra.