Cultura

VIRADA DO ANO no meu tempo de menino: o que marcou foi a folhinha (TF)

Lembranças do meu tempo de menino quando não havia champagne, foguetes, fogos de artifícios e festa na praça principal de nossa cidade
Tasso Franco , da redação em Salvador | 08/01/2018 às 13:38
Mantendo a tradição familiar da folhinha na parede de casa, em 2018
Foto: Lua Gonçalves
   Nos dias atuais, com as novas tecnologias da internet pode-se assistir a queima de fogos de artifício em várias partes do mundo na virada do ano, com imagens coloridas e transmissões em várias línguas. Diria que nos últimos 72 anos, desde quando vim ao mundo, houve uma transformação enorme nas sociedades, como nunca acontecera em outras épocas da existência do sapiens desde que ele começou a se oganizar em comunidades agrícolas há 15 mil anos, domesticando os bodes e cultivando o trigo.

   Lembro disso, em especial das transmissões ao vivo de festas dos réveillons no Rio, NY, Paris, Londres, Lisboa e de outras cidades do outro lado do mundo Seul, Sidney, Tóquio, etc, para comentar que, no meu tempo de menino, na pequenina Serrinha, anos 1940/1950, localidade que já era cidade mas nas residências ainda se usava luz de candeeiros ou velas, não havia foguetório na virada do ano, brindes de champagne, festa na praça principal, presentes à Iemanjá, nada disso. A gente virava o ano como um outro dia qualquer, salvo que era feriado e o comércio não abria no dia 1º de janeiro.

   Eu nasci em 1945. Até chegar a escola primária, aos 7 anos de idade, a gente não sabia de nada e o ano virava virando, a roda do tempo, silenciosa, engolindo os dezembros. Somente anos depois vim saber que meu pai ficara contente com os anos pós II Guerra Mundial, a partir de 1946, pois, como tinha uma tipografia e livraria comprava papéis, tintas, tipos, etc, de numa firma alemã, em Salvador, os Westfalen, e sofrera muito com a guerra na falta de meteriais. 

   E, também, só anos mais tarde, vim saber que houve uma Copa do Mundo de futebol no Rio de Janeiro, em 1950, quando eu tinha 5 anos de idade, e o Brasil perdera para o Uruguai, dentro de casa jogando no Maracanã. Em 1958, com 13 anos de idade, na Copa da Suécia que o Brasil foi campeão do mundo e surgiu Pelé para o futebol, como uma grande revelação, passou batida para nós. Mais tarde, não lembro quando, meu pai mostrou umas fotos no Cruzeiro do feito fantástico do Brasil, em destaque, Belini erguendo a taça Jules Rimet. Salvo engano o Serviço de Alto Falante Urubixaba, com Paulo Teiú e Dodó de dona Maninha comentando, comemrou-se o Brasil campeão do mundo em futebol. 

   Lembro ainda que na virada do ano havia pelo menos três coisas emblemáticas: a primeira era a troca da folhinha da parede de casa, com propaganda da Bacelar & Bacelar que era uma das lojas que davam folhinhas aos seus clientes, o que significava que o ano havia mudado. 

   Minha mãe sempre lembrava ao meu pai: - Bráulio, não esqueça de trazer a folhinha. 

   E no dia da virada, a folhinha nova dava lugar a velha na parede do chalé. Tinha dois modelos: uma chapadona com todos os meses do ano à mostra e uma imagem de paisagem européia, até campos nevados; e uma outra que continha quatro folhas, em cada uma delas três meses, destacados em grifo vermelho os dias santos e feriados.

    A segunda marca emblemática é que acabava o quejo de cuia do Natal, em Reis, quando minha mãe havia fatiado o tal de maneira que durava mais de dez dias, tiras bem fininhas colocadas nos pães do café da manhã para mim e meus irmãos Bráulio e Celeste. Significava dizar que era ano novo e o próximo queijo só chegaria à nossa mesa na semana do Natal; e a terceira é que tinha a festa dos ternos de reis na praça Luis Nogueira comandadas por dona Pipe Paes e dona Ivone Maciel Mota, com crianças participando, e a gente gostava muito.

   Era a nossa virada do ano. No mais só rotina. Salvo, também, que era a época do ano em que, já garoto depois dos 7 anos de idade até os 11 anos, estávamos de férias da escola primária e não precisávamos estudar. O tempo todo era gasto em brincar na praça da Usina. Tinha ano em que meu paí colocava toda família num carro-de-bois e levava para a Fazenda Capitão, distante 20 km da sede. E, anos mais tarde, eu já estava adulto, ele adquiriu uma casa no Jorro, numa ponta de rua que dava pra o Tucano, num areião, que a familia se dava a esse luxo no final do ano. 

   Em Serrinha, na boca da virada do ano, às vezes em meados de dezembro, aconteciam as trovoadas. O tempo ficava abafado, um calorão infernal, e São Pedro arrumava as mobilias do céu com cada estrondo de trovões e riscos de raios que a gente se tremia todo. Parecia que o mundo ia se acabar. Meu pai, nem tchun, ficava olhando pro céu admirado e qurendo mais chuvas. Quando a trovoada era rápida e a chuva não provocava enxurradas ele dizia: - Choveu pouco. Nem sei se barrufou la no Capitão.

   O Capitão era sua fazendo que ficava no distrito de Pedras após a curva da Bola Verde e após um lugar que se chamava Escorrego. Justo porque, quando chovia, até passar com carro-de-bois era difícil. Até 1960, quando ele comprou um jeep Willys, só ia pra a fazendo montando a cavalo. Depois, de jeep, o veiculo deslizou poucas vezes no Escorrêgo porque chuvas na Serra sempre foram poucas. 

   Quando fiquei maiorzinho e tinha essas chuvas de verão vestia um calção (ninguém falava a palavra short) e saía correndo pela praça da Usina com meus amigos para tomar banhos nas bicas do Armazém de Sêo Feliciano ou nas bicas do chalé lá de casa. Minha mãe ficava apavorada temendo que um raio nos matasse.

   O mês de janeiro era um forno. Como não havia piscinas na cidade, nem clube, nem mar, muito menos rio, a gente tomava banho no Tanque do Tiro de Guerra, isso depois dos 10 anos de idade. Antes, ficava era em casa mesmo, na praça, na casa de algum vizinho, esperando chegar fevereiro que era o mês do Carnaval e o retorno às aulas.

   O Carnaval era também um indicativo da virada do ano. Dei sorte: em 1952/53 foi inaugurado o Clube, local que se chamava Associação Culural Serrinhense (ACS), mas, todo mundo só chama 'o Clube' e surgiram os bailes carnavalescos infantis. E lá fui eu com meus irmãos para o baile que era à tarde, no domingo. Não me lembrou a fantasia que vestia. Anos depois, adulto, levei minha filha Nara, bem pequenina, para um desses bailes, no alvorescer dos anos 1970.

   A virada do ano trazia novidades na feira livre pois era a temporada das mangas, umbus e cajus. Meu pai trazia uns cajus deliciosos da fazenda. A gente adorava arreliar o padre Demócrito pulando o muro de sua casa, onde hoje é a Insinuante e o Banco do Brasil, para 'furtar' mangas. E, na feira livre, a gente comprava livros de umbu que era barratíssimo. 

   Serrinha dessa época era o tempo dos coronéis, em especial, o mais famosos deles, o Nenenzinho (José Carneiro da Silva Filho) que foi prefeito de 1946/1948. Era tido como valentão, mas, que eu saiba nunca matou uma rolinha fogopagô. O coronelismo local era diferente do da Chapada e da região do São Francisco. Nossos coronéis eram apenas politicos, donos do poder. 

   Em 1950, o prefeito era João Barbosa. Seu grande feito foi inaugurar o Mercado Municipal no antigo local do Tanque da Nação e isso marcou minha infância. Era o local mais charmoso da cidade e se situava entre minha casa e a loja comercial do meu pai.

   É isso! Serrinha era uma sociedade cristã católica até meu tempo de menino. E, para nós, crianças, as lembranças maiores ficaram relacionadas ao São João, festa das fogueiras, balões e fogos; a festa da padroeira, Senhora Sant'Anna, que tinha folguedos na praça e desfile da Filarmônica 30 de Junho; e o Natal, quando a Prefeitura colocava gambiarras na praça Luis Nogueira (luz de motor diesel) e era permitido armar tendas de jogos de dados e de cestinhas de natal com castanhas e outras guloseimas. 

   Da virada do ano, o que mais me lembro, de fato, é da folhinha. Tradição que mantenho até hoje. Agora, com a do Coração de Jesus, que compro todo ano nas Paulinhas e fico tirando folha a folha vendo o tempo passando, os dezembros chegando, e esperando abril quando completo 73 anos.  Em casa, na parede da cozinha, mantendo a tradição da folhinha (vide foto) com belas imagens de santos e paisagens.