Cultura

Esse mundo estranho em que bicho vira gente de estimação, OTTO FREITAS

Com tanta carência afetiva e solidão, as pessoas se afogam na comida ou em outras fugas.
Otto Freitas , Salvador | 16/10/2016 às 11:23
Luna
Foto: Arquivo pessoal
   Ela morreu bem velhinha, cega e surda, muito doente, quase não se aguentava mais em pé. Foi um final de vida doloroso, inclusive para a família, que sofreu muito, até a hora da passagem. Seu corpo miúdo e frágil foi cremado e as cinzas espalhadas pelo jardim, entre rosas e jasmins. 

   A sua lembrança, até hoje, comove todo mundo naquela casa. Luna partiu aos 16 anos. Era vira-lata, mistura de Maltês com Poodle; peluda, pequenininha e arisca; carinhosa, gostava de dengo; tinha um jeito delicado, cativante. Era a mais velha entre os cães de estimação da família, ao lado de Babi e Bento, que ainda são jovens. 

   Essa pode ser uma história de muitas famílias brasileiras que passaram a criar animais de estimação variados, mas principalmente cães e gatos, tratando-os como se fossem parentes - em geral os bichos viram netos, filhos, irmãos e sobrinhos. É de tal forma que pet pode até ser traduzido como filho mais novo. 

  Como a arte imita a vida, no cinema, por exemplo, ter cachorro como personagem principal ou coadjuvante é garantia de sucesso e muita emoção. Quem não se lembra de Marley, o Labrador trapalhão e afetuoso de Marley e Eu; e de Beethoven, o São Bernardo cujo filme rendeu sete continuações, de 1992 até 2011; ou ainda do fantástico Sempre ao Seu Lado, inspirado em fatos reais, que conta a história de Hachiko, da raça Akita, que espera até morrer pelo seu dono na estação do trem, por nove anos. 

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   Nesse mundo estranho de hoje, tão individualista e solitário, bicho virou gente de estimação, a verdadeira prova do amor incondicional que se mantém por raros laços invencíveis. Animais de estimação tornam-se reserva de valores hoje tão raros entre os humanos, como amizade e lealdade. Eles nada pedem em troca; alguns elogios, carinho e uns poucos petiscos já lhes bastam. 

   Mas excesso de zelo no cuidado com os bichos de estimação pode revelar carências afetivas do homem moderno, geralmente amenizadas por muita comida (metade da população tem problemas com a obesidade, em níveis diversos) e outros vícios, como jogo, bebida, compras e até chupar leite condensado, por um furo na lata, como acontece com alguns ex-gordos após a cirurgia de redução de estômago.

   Quem não se lembra já ouviu falar de Rogério Magri, ministro do Trabalho e Previdência do Governo Collor, e sua frase famosa que virou piada. Ele falava muito da sua cachorra Orca, uma dog alemã, e o seu apego por ela chamava a atenção. Até que um dia, flagrado usando o carro oficial para levar a cadela ao veterinário, justificou:

  -   Cachorro também é um ser humano.

   Era o começo dos anos 1990. Se fosse hoje, não seria uma piada tão engraçada assim.