Cultura

GORDO gosta de chuva, mas só sai de casa em tempo bom, p OTTO FREITAS

Gordo fica feito urso hibernando em tempo de chuva
Otto Freitas , Salvador | 21/05/2015 às 09:41
Gordo em tempo de chuva fica hibernando igual a urso
Foto: Hpie Science
Para o gordo, chuva é uma inspiração existencial e poética. Fisicamente, é um conforto, aconchego, música para a alma. Não há som mais bonito do que o da chuva no telhado, do vento balançando as árvores e agitando o mar. Com chuva e frio, o gordo se protege entre lençóis, mas o seu cobertor preferido é mesmo a comida. Comer aquece o coração e o estômago.

Não tem capa, guarda-chuva ou galochas que façam o gordo sair de casa. Quando chove, botar o pé na rua está fora de cogitação, mesmo que não seja temporal. Esfriou só um pouco, pior ainda. O gordo fica feito urso, hibernando, na cama ou no sofá, vendo a chuva cair pela janela. Lá fora, há um momento lindo da natureza. 

Quando vem a noite, todo cuidado é pouco: é chamar por Iansã, cobrir os espelhos da casa e rezar para que nenhum raio lhe caia na cabeça (não há comprovação científica, mas a crença popular diz que espelho atrai raios). Relâmpagos e trovões, mesmo assustadores, emprestam à noite um quê de fantasia e de sonho, como nas fábulas infantis. 

Esse é um ambiente perfeito para o gordo comer ainda mais. É fato que, no frio, qualquer pessoa sente mais fome, porque o organismo precisa de mais energia para aquecer o corpo. Mas qualquer razão é razão para o gordo satisfazer com tanta presteza o seu apetite voraz. Melhor ainda durante a ociosidade estimulada pela chuva, por aquele friozinho na medida, exigindo meias de lã, proteínas, gorduras e carboidratos. 

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Mas chuva também é ruim – não a chuva propriamente, porque ela traz água de beber, de gerar energia e de cultivar a lavoura que produz o pão de cada dia. O mal está em quem tem o poder de impedir as invasões e a ocupação desordenada da cidade, mas faz vistas grossas, por conveniência; o mal está em quem empurra negros, pobres e ignorantes sem chance na vida para as periferias e as ribanceiras perigosas.

Quanto mais morre gente, mais se repetem as velhas promessas de solução - mas fica tudo por isso mesmo, nada acontece. Essas pessoas ignoradas e desassistidas continuam penduradas nas encostas e atoladas nos baixios, esperando a chuva chegar trazendo, mais uma vez, a morte, o desabrigo, o desespero. Só lhes resta o último recurso da fé. 

É assim desde muito antes de Jeffinho se entender como gente. Quando Thomé de Souza chegou aqui, a muralha de taipa que construiu para proteger a cidade fortaleza não resistiu à primeira chuva e parte da encosta onde Salvador foi construída ruiu pela primeira vez, em 1551.

Desde então, os acidentes foram se repetindo, cada vez com mais frequência e intensidade. Diversas vezes, ao longo de sua história, Salvador viveu dias terríveis como os de agora, em 2015 – ou seja, 464 anos depois que a muralha de Thomé de Souza desabou e a terra correu encosta abaixo, pela primeira vez.