Modi ki bu tchoma? Cabo Verde é mesmo Afrika?

Fernando Conceição
08/11/2016 às 12:45
KABENGELE MUNANGA (pronuncia-se Kabenguelê), da Universidade de São Paulo (USP), convidado para recente discussão sobre proposta da administração central da Universidade Federal da Bahia (UFBA) de implantar o sistema de cotas para ingresso de candidatos nos programas de pós-graduação desta universidade, lembrou do seu tempo de acadêmico na Bélgica:

“- Dos brasileiros com os quais cruzava nas universidades belgas, nunca encontrava um negro.”

Acabo de chegar de Cabo Verde, país no meio do Atlântico usado como rota por Portugal para seu comércio de africanos escravizados.

Ali estive por uma semana a fim de participar de um congresso de estudos de Comunicação, o Lusocom, viagem que me foi financiada pelo Poscult, programa de pós-graduação onde atuo e que ajudei a criar na UFBA em 2005.

Estamos em 2016. O Brasil avançou, mas a experiência que tive durante as mesas redondas e exposições das quais participei como palestrante ou ouvinte é a mesma dos tempos que o africano Kabengele, nascido no ex-Zaire explorado pelos belgas, vivenciou no país europeu.

Pude constatar: afora os locais, havia dois acadêmicos negros no Lusocom. Um vindo de Maputo, Moçambique. E das dezenas ou centena de brasileiros das mais diferentes praças acadêmicas do Brasil, apenas este escrevinhador.

Dai resulta que as discussões que testemunhei dos meus pares se afigurarem totalmente alienígenas, como se alienados à realidade social do Brasil que cobra a vida por homicídios de quase 60.000 brasileiros/ano, esmagadora maioria jovens e negros. Foi do que fui essencialmente falar.

AINDA VOLTAREI ao tema – analisando mais detidamente o debate sobre cotas para negros e indígenas na pós-graduação da UFBA, que já chega tarde, muito tarde. Como professor da casa, há mais de seis anos lancei esse desafio pela lista eletrônica oficial de “debates”, obtendo como resposta um silêncio sepulcral.

Por ora, falar um pouco, e parcialmente, de Cabo Verde é o que interessa.
Faz 15 anos, pelo menos, que dois estudantes caboverdianos aos quais orientei em iniciação cientifica e em seus trabalhos de conclusão do curso de jornalismo na Facom/UFBA, convidam-me a visitar seu país.

O ex-mnistro e jurista Mário Silva (à esq.), com Margarida Fontes em primeiro plano, uma colega da TV de Cabo Verde e este escrevinhador em jantr beneficente para ilha do Fogo, em foto de 22/10/16
O ex-ministro e jurista Mário Silva (à esq.), com Margarida Fontes em primeiro plano à dir., uma sua colega da TV de Cabo Verde e este escrevinhador em jantar beneficente para ilha do Fogo, em foto de 22/10/16

Margarida Fontes, hoje uma das estrelas da TV de Cabo Verde, e Paulo Mendes, coordenador de Comunicação da Assembleia Nacional dos Deputados, foram os meus anfitriões no período em que ali permaneci.

Margarida me localizou no próprio evento da Lusocom e imediatamente marcamos um jantar em afamado restaurante da Praia (a capital do país). Na hora, ela veio com seu companheiro, o jurista Mário Silva, autor do recente Contributo para a História Político-Constitucional de Cabo Verde (1974-1992), que me presenteou e estou lendo.

Desde aquela primeira noite não mais perdemos contato. Em verdade Mário Silva, que orgulha-se de ser um “badio”, é personagem importante da história recente do país.

Foi ministro de Estado e membro da Assembleia Nacional com o fim do regime de partido único que se seguiu à independência. Hoje dedica-se à advocacia, à escrita e a um espaço cultural-literário distinto, que visitei para adquirir alguns livros.

Badio é termo crioulo para vadio, como os colonizadores portugueses denominavam os negros insubmissos da ilha de Santiago, principalmente os da Praia. No presente, equivale a dizer ser do gueto. Na linguagem do baianês, “gente que não come reggae“.

Arquipélago composto por dez ilhas vulcânicas, uma das quais desabitada, Cabo Verde produz na ilha do Fogo, onde Margarida Fontes nasceu, um excelente vinho. Mário Badio me fez provar. Porém, devido à erupção de um dos vulcões ali ocorrida no início do ano, destruindo parte das vinícolas, a safra rareou, o que torna difícil hoje encontrar uma garrafa.

Democracia estável, apesar de relativamente pobre, o país não possui as escandalosas desigualdades sócio-econômicas nem os conflitos e guerras étnicas tão comuns na África continental que este escrevinhador já conheceu.

Em torno de 40% de sua população vive no exterior, principalmente Estados Unidos e países europeus, enviando à terra natal divisas. Outra parte de sua riqueza provém da ajuda internacional, outra do turismo, atividade explorada principalmente nas ilhas de Boa Vista (onde nasceu o romancista Germano Almeida), Sal e São Vicente (onde nasceu a diva Cesária Évora).

Toma por base o número de vôos saindo e chegando do aeroporto da Praia, em até dois diários para esses lugares, enquanto que para Dakar (no Senegal, mais próximo) ou Luanda (Angola), quando previsto são uma vez por semana.

Musical, Cabo Verde não é, portanto, apenas Santiago, a maior de suas ilhas, ao sul do arquipélago. Com os colegas do Lusocom percorremos num sábado toda a ilha, da sulista Praia a Tarrafal, ponto extremo ao norte, passando pela Cidade Velha – onde os portugueses erigiram em 1495 a primeira igreja colonial do mundo, com as ruinas hoje declaradas “Patrimônio da Humanidade”.

Do casal Margarida e Mário ainda fui presenteado com o último CD de Lura, cuja música conheço de antes (clique para ouvir) e levado para uma atividade social de arrecadação de fundos para o famoso festival cultural-religioso que ocorre em Fogo na segunda quinzena de abril.

Quanto ao orientando Paulo Mendes, eu aguardava na porta da Universidade onde ocorreu o Lusocom um taxi para o hotel, quando um carro passou, buzinou, parou e abriu a janela. Era ele, que me reconheceu e levou-me a almoçar, numa sexta-feira, uma katxchupa, espécie de feijoada feita com milho, prato típico caboverdiano.

Depois, pegou-me para rodar à noite por pontos frequentados pela gente local. Na madrugada de sábado para domingo, à Zero Horas, danceteria frequentada por badios e badias – com seu bailado de tarrachinha, funaná, zouk, morna…